A literatura como um descanso e um assombro
Michael Cunningham e Fal Azevedo, as contradições e as complementaridades a mim e ao cotidiano que penso ser o meu
Depositei minha tese, participei de dois Congressos, um de literatura em que apresentei um trabalho de sobre Madame Satã e outro especificamente da ciência da religião em que compartilhei minhas veredas pelo devir macumbeiro e o samba Hutukara do Salgueiro. Falei dos dois aqui e aqui, como consequência desses trabalhos encavalados, tirei alguns dias de férias das leituras direcionadas para as temáticas que tanto me interessam e, talvez por isso mesmo, viraram meus apoios acadêmicos e parti para a literatura do Michael Cunningham para descansar a cabeça.
Estava navegando por um sebo online atrás de uma edição d`O Pasquim em que Satã havia dado um entrevista e nos vaivéns das abas do comércio online, percebi que Laços de Sangue, um livro do Cunningham que eu havia lido no começo da adolescência estava numa baita promoção, coisa de 10 reais, e comprei. Queria mesmo ler um novelão LGBTQIAPN+ meio existencial, meio decadente e mais um bocado de drama familiar.
O livro chegou em minha casa e um fim de semana depois o terminei. Comprei outro exemplar para deixar com minha mãe e com minha tia e, voltando às leituras acadêmicas, agora uma biografia (decepcionante, não entendi por quê) de Luz del Fuego, escrita pelo espanhol Javier Montes, não desisti dos outros livros do Cunningham, entendendo que até o submissão do meu pós-doc em agosto, ainda estou em período de férias. Emendei Laços de Sangue com Ao anoitecer e Dias Exemplares, ainda na esperança de até o fim do mês reler As Horas e A casa no fim do mundo.
Tudo isso para dizer que eu detesto literatura estadunidense. Tenho a impressão de que tudo o que li produzido no país tem uma presunção somada a uma preguiça estilística ecoadas por um marasmo existencial. É uma literatura que se vende demais e, por isso, faz de menos. Só que a exemplo de outro livro que li no fim do ano passado Os profetas, de Robert Jones Jr., entendi que alguns livros estadunidenses me interessam, como os do Cunningham, e em comum entre todos eles está o fato de que alguma personagem é bicha.
Quando eu li As Horas, o fiz voltando de Porto Alegre, também em férias de julho, quando fui ficar com minha tia que morava no centro da capital do Rio Grande do Sul, perto da Borges de Medeiros. Embaixo do viaduto havia um sebo e lá estava, na vitrine, bem exposta, ironicamente sem um pó, uma edição publicada pela Companhia das Letras, com uma capa à lá natureza morta, com várias frutas em tom sépia. Comprei. O filme eu já havia assistido e me faltava ler o livro, supreendentemente tão mais queer quanto o filme com Meryl Streep, Julianne Moore, Nicole Kidman e Ed Harris.
Fiquei interessado em mais desse tal Cunningham. Em sua literatura, pouco em sua vida. Daí eu li pela primeira vez Laços de Sangue e A casa no fim do mundo, este último também adaptado para o cinema com a Colin Farell, bem mais ou menos, mas para um adolescente gay, o mediano, no quesito oferta de repertório cultural, já era o bastante. Não sei o que aconteceu comigo de, logo agora, quando os meus interesses de leitura são tão diferentes desses, querer reler esses romances e ainda ver sentido neles, gostar deles e querer falar sobre eles.
Fui passar o fim de semana em Araras, cidade onde nasci e cresci e da qual fui embora aos 17 anos para fazer faculdade. Queria apresentar os pontos turísticos (que não são mais os mesmos) ao Rubens e ver um pouco a minha avó que já tem sido violentamente arrancada de seu cotidiano existencial por um doença neurodegenerativa. Aparentemente um enredo de romance do Cunningham, ou seja, o sentido que tanto tendo encontrar nos motivos de gostar de seus livros é esse mesmo, o existencialismo dramático está todo escancarado aí, mas a sujeitificação e a alteridade de que venho falando por aqui também, e isso só fez sentido nessas minhas releituras.
(…) você derrubou sua casa não por paixão, mas por negligência. Você, que ousou pensar em si mesmo como alguém perigoso. Você é culpado não da épica transgressão, mas de crimes minúsculos. Você fracassou do jeito mais baixo e humano: você não imaginou a vida dos outros. (p. 260)
Esse trecho está nas últimas páginas de Ao anoitecer, o livro que terminei de ler voltando para São Paulo, no ônibus, cansado de um fim de semana em que descanso e atividades produtivas precisavam ser encaixados da melhor maneira. Foram e não foram, e é assim que a gente continua no nosso devir. Tenho pensado cada vez mais nessa frase: “você não imaginou a vida dos outros". Sessões de análise e a gente se dá conta de que o que somos nós senão nós mesmos e o que são os outros para além do que eles podem/devem/querem/precisam ser? Embora eu concorde, não é disso que eu quero falar. Cunningham, na sua praticidade estadunidense e em seu conformismo capitalista de uma biografia bastante interessante, professor universitário e escritor com agente (os caras têm agentes literários que vendem as sinopses de seus livros…), entender a vida dos outros para além da sua é isso mesmo, um tapa na cara e um exercício de empatia, mas eu tendo cada vez mais a pensar nas sujeitificações e nas alteridades.
Livros do Michael Cunningham tirados da estante (edições da Companhia das Letras de diferentes anos).
A vida dos outros são detalhes que ecoam de nossas convivências e que fazem sentido estrutural para a manutenção de nossas pequenas comunidades nesse exercício político que é viver e estar em sociedade. Os outros não são apêndices, mas também não se resumem a meras outras existências apartadas como se não precisassem de respeito, conduta, ética e estética. Difícil manter esse exercício diário de perceber sujeitificações e produzir alteridades. Quando falei de tentarmos nos apropriar das rasuras de nosso tempo espiralar para produzir memórias de encantamento, é um pouco isso que estava defendendo. A gente reverbera repertório, mas também constrói em conjunto.
Em resumo? A desesperança de Cunningham é o que me instrumentaliza a continuar a esperançar. Suas personagens vivem no tom sépia de uma vida estadunidense assombrada por traumas hegemônicos e por situações de abandono de saúde pública, como o HIV, por exemplo, o que produz um padecimento de suas relações para além de qualquer possibilidade de reconstrução. As existências se apóiam quando necessários, se suportam, mas se isolam cada uma em si.
Eu tendo a repensar o convívio, e as possibilidades de um esperançar. Aí eu me lembrei de outra escritora que também me formou enquanto leitor, a Fal Azevedo. Ela escreve por aqui e publicou dois livros que vira e mexe eu releio ou, então, folheio para cair em alguma página que, com toda a certeza, fará sentido para mim. Ela não tem personagens queers que esfregam em nossa cara possibilidades que não alcançaremos ou que ainda bem delas não padecemos, mas em Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite e em Sonhei que a neve fervia, diante dos traumas cotidianos e dos assujeitamentos abstêmios violentamente produzidos porque somos humanos e estamos presos a uma lógica de exploração, Fal escancara a relação com os outros, com a finitude dos outros, com a dependência dos outros, com o abandono dos outros, com a graciosidade dos outros, com o alívio que é estar com os outros e com o alívio maior ainda que é estar sem os outros, com o fim.
Eu? Eu não, foi outra a história do meu desmonte. Mas eu teria sido tão boa para você, que, de alguma forma, teria sido boa para mim também, eu acho. Teria sido eu a ;he explicar que você não é mais um menino e, em mim, você teria acreditado. Eu teria sido boa para você, muito boa. Você teria me odiado e eu teria sido boa para você. (p. 97)
Ainda é férias e aproveitei este espaço para indicar esses livros todos, compartilhar o quanto a literatura, mesmo despretensiosa, tanto diz sobre a gente, nos coloca diante do outro, sendo objeto de sua perspectiva e perspectiva desse objeto, porque a gente está aí, na continuidade, na convivência e no conflito. O trecho acima é de Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, da Fal, e escancara justamente a preciosidade que existe na alteridade do outro.
Livros da Fal Azevedo tirados da estante, ambas edições da Rocco.
Por isso, leia Fal Azevedo, leia o esperançar de sua literatura, leia a vida da Alma, sua personagem matadoura e matável, na miúdeza, no detalhe, no ínfimo e a sua própria experiência de luto e de continuidade após presenciar a trágica e desesperadora morte de seu marido. Fal também é o outro, mas está na brasilidade, no despretensioso ritual que nos sujeitifica e que nos confere alteridade porque somos continuidade, somos a insistência na diversidade, na pluralidade e multiplicidade.
Pensando agora, parece engraçado comparar Michael Cunningham com Fal Azevedo, mas não o é. Ambos são repertórios do meu descanso, do meu sossego e do meu prazer. São contraditórios e são complementares a mim. E por ser férias, continuarei a lê-los, e aconselho que faça igual.
Depois eu volto com o devir macumbeiro, por ora, ficarei com os títulos pretensiosos do Cunningham e os deliciosos e irônicos de Fal.
Ô amor. que coisa mais generosa. <3 <3 <3
e lá vou eu anotando mais livros na minha listinha de próximas leituras…