À sombra de seu encantamento
A biografia de Luz del Fuego é um exemplo de como não escrever a vida de alguém
Não sei por que eu resolvi escrever sobre um livro de que não gostei. Acho que para ser um lembrete daquilo que não devemos fazer enquanto pessoas que pesquisam a vida de outros alguéns. Sei bem por que comecei a ler o livro que pretendeu narrar a biografia de Luz del Fuego e sei, também, o motivo de eu ter demorado mais de um mês para ler suas 262 páginas. Não achei o livro chato, não o percebi como exaustivo ou enfadonho, mas vi ali um exemplo do que não fazer.
Escrita por Javier Montes, um espanhol (!!!) e publicada pela Editora Fósforo em 2022, o que me ganhou ao término da leitura foi a boa tradução de Silvia Massimini Felix e infiro que ela deve ter pensado: mas quem há de considerar isso uma biografia?
Poderia ser uma ode à pessoa de del Fuego? Um encantamento do estrangeiro vislumbrado pelas potencialidades e idiossincrasias brasileiras? Poderia. Poderia ser um longe perfil publicado no Buzzfeed? Seria melhor. Terminei a leitura achando um relato bem ególatra do Montes sobre seu arcabouço intelectual e seu repertório de literatura, porque o homem deu um jeito de citar até Breve romance de sonho do Schnitzler, e desnecessárias as muitas elucubrações e os achismos para tapar buracos que não o autor não conseguiu perspectivar de maneira satisfatória (e biográfica).
Eu explico melhor.
Luz del Fuego e sua jibóia, acervo da Folha.
O primeiro capítulo é incrível! Foi após sua leitura que comprei o exemplar do livro na Martins Fontes da Paulista, mesmo com seu alto preço (mas não vamos entrar nessa discussão). Intitulado 25/2/1952, as oito páginas narram o feito carnavalesco de Luz del Fuego no Baile de Gala no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O autor não aborda, mas considero interessante pontuar que em meio à vontade de se tornar um Brasil-nação forjado às aparências europeias de um festejo desencantador, essa institucionalização de uma conduta de aculturação brasileira e de assimilação cultural francesa fez com que a burguesia praticasse um carnaval distante daquele que as ruas reverberaram.
Os desfiles alegóricos dos dias 23, 24, 25 e 26/2 de 1952 tiveram seu resultado anulado como consequência de uma chuva absurda, que impossibilitou um julgamento coerente. Enquanto a diplomacia era praticada num acordo (de disputa, diga-se) do carnaval arruaceiro, a burguesa bagunçava o coreto em suas má-vontades de ser e de estar em festa, enquanto del Fuego atirava, com pistolas, em todo o teto do Municipal. Esse paradoxo muito me interessa, mas consegui estabelecê-lo porque pesquiso, senti falta desses contextos e dessas críticas no livro que se pretende uma biografia, mas que, obviamente, são detalhes supérfluos ou desconhecidos para a perspectiva estrangeira do autor.
Compartilho aqui o último parágrafo do primeiro capítulo, o que me fez continuar a leitura do livro:
Porque o gosto do pó grudado nas gargantas e o cheiro de pólvora que os convidados jamais esquecerão produziram uma curiosa maldição que magicamente acelerou o desenlace da festa mais famosa do planeta e sobrepôs uma Quarta-Feira de Cinzas, poeira e escombros à Terça-Feira o Carnaval mais celebrado do mundo. (p. 25)
Mas depois disso, foi só derrocada.
Na página 44, descobri que ela nasceu Dora Vivacqua, em uma quarta-feira de cinzas, um encantamento que poderia ter sido mais explorado, também que seu pai foi assassinado quando Dorinha tinha apenas 15 anos, dado presente na página 47.
Biografia publicada pela editora Fósforo e escrita por Javier Montes
Depois da retranca Um verão por volta de 1930, na página 56, o autor perde uma oportunidade tremenda de especificar um racismo à brasileira, de explorar a colonialidade que assombra o país, em vez de potencializar a estética do Brasil-nação tão aspirante a uma França utópica, “ainda acredita que a pele bronzeada é sinal de impureza de raça ou de trabalhos plebeus curtidos ao ar livre” (p. 56), ele até tentou pontuar as violências raciais institucionais do país, mas parou por aí.
Depois de mais um recurso egóico, em que afirma “Luz del Fuego não cresceu na casa de Bernarda Alba” (p. 62) inferindo que a pessoa leitora de seu livro tenha o repertório de García-Lorca, o autor apresenta a vivência estética do Vivacqua como “tangos, no máximo os de salão, porque o criollo e a milonga dos morros onde os negros vivem: esses são um pecado mortal". Outra oportunidade ignorada de discutir o racismo dominante do país.
Só para pontuar mais um racismo não discutido, página 86, segue
“(…) e passeiam no domingo, na hora da caminhada, as senhoritas casadoiras, do lado esquerdo, claro, no qual bate sombra naquele horário. O lado direito é usado de acordo com mandamentos não escritos e, portanto, duplamente estritos às serviçais negras, as empregadas, cuja pele marrom não precisa de tantas considerações e pode ser exposta sem dano algum ao sol forte do Planalto mineiro, que insiste em exibir com uma força e um ardor indecorosos”. (p. 86)
Sabemos que Javier Montes descreve uma Minas do início do século XX, mas o fato histórico pode ser dito de diversas maneiras e os recursos de problematização e contextualização são variados.
Além dessa questão muito intrínseca das disputas raciais e sociais do Brasil que escapam, pelo visto, das sensibilidades e das atenções de uma perspectiva estrangeira, muito me incomodou as inferências do autor sobre a vida da del Fuego. A partir da página 100 ele se demora longamente contanto causos da vida da biografada, mas tapando os buracos com fontes que, realmente, não sei de onde surgiram. (Me chamou a atenção o livro não ter referências bibliográficas, uma escolha editorial? Autoral?)
O livro recupera seu impulso inicial (restrito ao primeiro capítulo) na página 251, em seu penúltimo capítulo, Revertere ad locum tuum1, em que o autor descreve um não-lugar (mais um) ocupado por Luz del Fuego nos anais de personalidades brasileiras, ao narrar sua pesquisa empírica no cemitério São João Batista onde Dora Vivacqua está enterrada.
Confesso gostar do jogo perspicaz de encantar a história por meio dos detalhes concretos dos trajetos, por exemplo, a escritura inicial da casa das pessoas mortas no Rio de Janeiro, “Volte para o seu lugar", segundo o autor,
“indicação imperativa para aqueles que o atravessam já mortos e lembrete para quem o visita ainda vivo. É uma variação sobre o tema do breve e desalentador salmo que toda Quarta-Feira de Cinzas nos lembra, que do pó viemos e ao pó voltaremos, quando a cruz cinzenta de fuligem sobrepõe os restos da festa do dia anterior na testa de todos nós pecadores". (p. 251)
Também destaco a descrição da degradação do túmulo como a construção de um esquecimento da existência e do mito encantado que foi/e é Luz del Fuego, pela perspectiva do autor que assumidamente se colocou no lugar de percepção,
“é difícil para mim sentir tanto entusiasmo: o túmulo é uma caixa de sapato gigante de mármore manchado pela intempérie, sem qualquer inscrição, coberto por uma camada de poeira já petrificada. Faz muito tempo que ninguém passa por aqui. Olhando de perto, eu distingo silhuetas claras contra a poeira enegrecida: devem ter correspondido ao Cristo e às letras de bronze que alguém deve ter roubado anos atrás. Permanecem as perfurações no mármore em que se engastaram os ganchos das letras". (p. 253)
Ou no trecho,
“o túmulo no São João Batista é tão opaco, tão inexpressivo, como os laudos periciais da polícia judiciária do Rio ou as páginas apressadas que a imprensa carioca dedicou ao assassinato de Luz del Fuego. Sepultura silenciosa e relatórios disparatados deixam de fora detalhes que são ao mesmo tempo importantes e insignificantes que sobreviveram na memória e os testemunhos de alguns conhecidos por ocasião de sua morte e que ajudam, se não a entendê-la melhor, a representar um pouco mais vividamente sua ausência de sentido". (p. 254)
Por fim, acredito que não haja necessidade de estender este manual de como não escrever um biografia de uma existência complexa e sofisticada na brasilidade cooptada e escangalhada pelo Brasil-nação, ainda mais por uma percepção limitada de um repertório estrangeiro. Fico na ansiedade de ler o livro citado nos agradecimentos (como disse, a edição não tem bibliografia) escrito pelas autoras Cristina Agostinho e Branca Maria de Paula Luz del Fuego, a bailarina do povo, edição da Editorial N30, de 2017. Dei uma busca rápida na internet e não encontrei. A Fósforo poderia se esforçar e recuperar essa obra, não?
Em suma? Enquanto não leio essa biografia da bailarina do povo, em vez de padecer sob o desencanto promovido por Montes, prefiro reverberar a Luz del Fuego composta pela Rita Lee, em suas representações de permanência, a depender do devir:
Eu hoje represento a loucura
Mais o que você quiser
Tudo que você vê sair da boca
De uma grande mulher
Porém louca!Eu hoje represento o segredo
Enrolado no papel
Como luz del fuego
Não tinha medo
Ela também foi pro céu, cedo!Eu hoje represento uma fruta
Pode ser até maçã
Não, não é pecado
Só um convite
Venha me ver amanhã
Mesmo!
E por aí vai…
Antes de finalizar, só recuperando os encantamentos do Jogo do Bicho dos quais falei em edições passadas, o jazigo de Dora Vivacqua é o de número 15618. Diante de seu esquecimento, sugiro reverberarmos seus encantos múltiplos por meio do Jacaré na cabeça (número 15) e as dezenas 61 e 18: Leão e Cachorro. Vai que…
Antes de finalizar este texto um pouco esquisito, confesso, quero deixar dois comentários, o primeiro é ainda sobre o livro do Javier Montes e seu último capítulo, sobre a busca de uma pesquisadora botanista pela orquídea Luz del Fuego cultivada no Brasil. Essas 4 páginas de descrição são satisfatórias como um texto das Esquinas da revista Piauí, uma delícia de ler, um misto de curiosidade, de boa narrativa e de piscadinhas à brasileira, crônicas de nossas sociabilidades, encantamentos que só a gente consegue produzir.
Mesmo que você não tenha vontade alguma de ler o livro todo do Montes, pegue um exemplar na livraria e se demore um pouco no primeiro capítulo e neste último. São realmente bons.
Outro comentário é sobre a premiação do Jabuti Acadêmico que comentei na edição passada, Exu-Mulher e o matriarcado nagô de Claudia Alexandre ganhou na categoria Ciência da Religião e Teologia e isso é extremamente importante para nós que propomos uma virada mais do que decolonial, mas brasileira na produção de pesquisas em nossa disciplina. Exu reverberou seu axé e isso é grandioso! Sugiro que leiam a obra de Claudinha!
Retorne ao seu lugar! (Essas inscrições em latim e, óbvio, o autor permaneceria em latim porque né…)
Imagino que também que o autor tenha passado batido em questões de gênero, não? Essa é uma personagem que merecia ser mais conhecida mesmo
é bom saber também o que nos desagrada.