Alegria de erê é ver gente sambar
Um pouco sobre o axé brincante e a nossa capacidade de esperançar da criançagem macumbeiro
Eu, num descuido precipitado de agenda, encantado com a minha visita ao Axé Ilê Obá, avisei que escreveria sobre esse reencontro com a casa, após a publicação de meu livro, Embranquecimento do candomblé? (PLURALIDADES, 2024), mas me esqueci completamente de que hoje é 27 de setembro, dia de Cosme e Damião, os santos gêmeos que, de tão serelepes, atravessaram os muros das igrejas e ocuparam as ruas com alegria, festejo e transgressão, pulando nos bares, nas farmácias, nas cozinhas, das lojas de armarinho, nas encruzilhadas, no nosso querer bem.
Quando eu defendi a minha tese sobre o devir macumbeiro, a dediquei a minha avó Suely e ao meu avô Marcello, duas pessoas que permitiram eu ser a criança que fui e conseguir me tornar o adulto que sou. Eles me deixaram sonhar, desejar e esperançar, sem impor limites cerceadores àquilo que eu, aparentemente, transbordava. Não me controlaram, não me podaram, não me convenceram do contrário, apenas, em silêncio, observaram os meus passos dessa contradança que foi ser uma criança viada sistematicamente construindo um universo muito mais colorido do que violento e arbitrário. A criança que eu fui brincou porque os dois deixaram e o adulto que sou brinca porque aprendeu o valor de uma liberdade responsável.
Preservar essa infância é uma decisão política e poética que as macumbarias nos ensina a tomar. É um acordo ético e estético de uma sociabilidade encantada que nos permite praticar um axé brincante e a elaborar desejos e construir esperançar naquilo que o Viradouro cantou, em 2017, como quem dera.
Queria falar sobre o caruru de erê, mas a
já o fez com muito encantamento em seu texto "Setembro e sua doçura", publicado no ano passado. Recomendo que leiam, porque não conseguiria escrever melhor do que ela sobre o sabor desse alguidar com quiabo, dendê, camarão, amendoim, gengibre e coentro, muito coentro. É para a gente se lambuzar lendo e desejar uma Salvador cada vez mais risonha e doce.Quem renova o meu axé brincante e o meu quem dera é o pequeno Caê, filho de Exú e de Oiá-Iansã, dupaizinho do Lírio, alabê de Oxaguiã. Quem me inspira na proteção da sujeitificação e da alteridade das crianças é sua mãe, minha amiga,
, garantindo a poética e a política cotidiana presentes na educação de uma criança. Dedico esse texto a essa dupla. Peguem o guaraná e a mariola, porque os erês chegaram!Para homenagear Zeca Pagodinho, a Grande Rio puxou, em 2023, seu samba-enredo com
Ô que bela quitanda,
quitandinha de erê.
Seu balancê,
tem quitandinha de erê.
Gosto de pensar na sabedoria do erê, esse moleque transgressor, com gracejo e gingado, praticado nas macumbarias e reverberados pelo encantamento, por meio de sua quitanda. Nos candomblés, e com risco de ser precipitado em minha generalização, os erês, quando nasciam junto de seus orixás, corriam as feiras livres com um balaio de vime, um saco grande de tecido ou um alguidar na cabeça colhendo frutas, negociando doces e distribuindo brincadeiras para dividir, depois, com sua família de axé.
Esse costume ainda continuou em algumas casas de Angola, Queto, Jeje e Omolocô, mas é pouco visto em nosso dia a dia do santo em 2024. Parto da hipótese de que tem dedo neopentecostal nisso, mas não vem ao caso neste texto. O importante é pensarmos no valor ético e estético presente nessa quintadinha.
Os erês nos ensinam a garantia do nosso tempo presente, seja pelo sustento, pela manutenção do axé brincante ou pela capacidade de agir pelo quem dera, é nas negociações dos encantamentos que as crianças enchem um balaio com comida para ser dividida com toda a comunidade. A partilha é a sociabilidade que mantém o devir.
Na poética do discurso do martinicano Èdouard Glissant, ele sistematiza os ecos-mundos que nós produzimos por meio de nossas artes como formas de nos garantirmos enquanto sujeitos únicos e ao mesmo tempo pertencentes a grupos sociais. Acredito que são os erês que nos ensinam essas multiplicidades dos ecos por meio de seu axé brincante. Garantindo a existência (e não a sobrevivência) de uma criança, podemos garantir o seu sonhar.
Na quitanda do erê cabe o corpo plural, múltiplo e diverso que pratica a transgressão ao encarceramento abstêmio e produz a alteridade da sujeitificação abundante. Sua quitandinha é ontológica, epistemológica e metodológica, por isso, é interessante percebermos o quanto a brasilidade entende o erê em seu cotidiano, não só pela festa, mas pela liberdade do dia a dia e da arruaça.
Cosme e Damião, apesar de santos católicos, são garantidos na ritualística de um catolicismo popular, o reacionário dá pouca trela aos gêmeos que nos ensinam a brincar, preferem ficar com o martírio violento dos santos sofredores, na castidade e no aprisionamento. Sou de um tempo em que cozinha feliz tinha imagem dos irmãos em cima da geladeira, com balinhas e pirulitos e um copinho de, torço ser água, mas acredito ser cachacinha.
Comércio? Tinha Cosme e Damião. Farmácia tinha Cosme e Damião. Armarinhos? Olha lá os santinhos perto do caixa. Botequim, ao lado da caixa registradora, os dois vigiando as entradas e saídas de dinheiro. A quintanda é a convivência!
Por muito tempo acreditei que a Maimbê Dandá foi composta pelo Carlinhos Brown, qual a minha surpresa quando vi que foi por Mateus Aleluia e Antonio Carlos Santos de Freitas a criação da frase “alegria de erê é ver gente sambar"? Nenhuma! O mestre dos Tincoãs é o detentor de toda nossa capacidade de esperançar por meio do quem dera.
Daniela Mercury ensina a todo carnaval que
Corre, Cosme chegou,
Doum alabá,
Damião Jaçanã,
pra levar e deixar,
alegria de erê
é ver gente sambar!
Não como uma simples forma de pular por todo o circuito Barra-Ondina, mas como a lembrança de que precisamos saber sambar. Esse verbo que os erês empregam é o saber dançar na festa e, também, no desafio. É um ontologia intrínseca ao ser e ao estar. Saber sambar é “se vira aí, dupai” ou “bóra, dupai”!
Sambar é permitir que a ontologia do corpo permaneça. É a gente produzindo saberes diariamente. É disso que erê entende.
Em 2017, no enredo Todo menino é um rei, o Viradouro cantou o refrão
Quem dera poder tocar as nuvens de algodão.
Quem dera mergulhar na doce tentação.
Colorir um mundo bem mais belo,
fazer da alegria o meu castelo.
Com lápis de cor, eu vou desenhar
traços da minha paixão.
No amanhã, eu acredito é nessa molecada
que não dá bola pra tristeza, não,
na proteção da Ibejada.
O devir macumbeiro desse samba-enredo está em sua forma de perceber o tempo presente como oportunidades para ser e estar no amanhã, na construção de direitos e proteção às crianças e na garantia de seu esperançar e possibilidades de sonhar/desejar no quem dera.
A proteção da Ibejada não é apenas uma confiança no santo, é a decisão poética e política de práticas éticas e estéticas de sociabilidade. É garantia de (re)existências!
Em minha tese eu sistematizo o quanto a criançagem é fundamental para a nossa sujeitificação e a nossa alteridade (BONINE, 2024). O erê possibilita a nossa multiplicidade, a nossa pluralidade e a nossa diversidade porque ele é livre!
Desejo que neste 27 de setembro a gente não se esqueça das crianças, dos erês, de Cosme, de Damião, de Doum, dos gêmeos, da Ibejada, dos doces, dos sonhos, dos tratos, dos jogos, dos dribles e da esperança. Com guaraná e mariola, na encruza, no botequim ou debaixo de uma árvore, a criança se refestela com sua oportunidade de só existir.
Desejo que a gente saiba sambar e saiba brincar. Que a nossa quitanda seja generosa. Quem dera a gente conviva como as crianças! Axé!
Referências da vez:
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Lisboa: Sextante, 2011.