Amarração infalível e subterfúgios do desejo
Um pouco sobre pombagira, macumbaria e o novo lançamento de Alice Caymmi
Desde que eu e Graziella nos conhecemos, percebemos que o acaso enredou um jeito muito estratégico e orgânico para que a gente se relacionasse e nem precisasse insistir nessa amizade. Por acaso, anualmente a gente viaja juntos para Salvador; por acaso, a gente vai a shows de Maria Bethânia juntos; por acaso, a gente morava no mesmo quarteirão, mas ela se mudou, por acaso também, a algumas quadras da travessia da minha casa; por acaso somos do mesmo signo zodiacal; por acaso nosso orí tem os mesmo pai e a mesma mãe; por acaso, estávamos juntos no último show da Gal e sentimos alguma coisa esquisita, ridícula e ínfima, que nos fez continuar; por acaso, a gente gosta dos mesmos restaurantes e das mesmas comidas servidas nesses restaurantes, com exceção das tigelas da Bela Gil, porque ela vai pro oriente e eu pro ocidente; por acaso temos uma lista de possíveis episódios para um possível podcast que, por acaso, não colocamos em prática porque julgamos ser muito inadequado; por acaso, temos algumas listas de supermercado em comum, com ingredientes minuciosamente escolhidos para, por acaso, decidirmos cozinhar juntos; por acaso, acordamos com mensagens um do outro dividindo sonhos na esperança de uma análise precária; por acaso, dividimos livros; e por acaso, compartilhamos músicas recém-lançadas. Então que, por acaso, nesta semana, Alice Caymmi lançou O amor, uma versão de El amor do espanhol Rafael Peréz-Botija, um setentão dos cafonas incríveis que parece arregaçar com qualquer coração. Não por acaso, enviei a ela nesta manhã e depois de um tempo, “comecei pensando ‘lá vem o Eduardo com suas músicas esquisitas’, terminei chorando".
Não é sobre o acaso, é sobre a teimosia da insistência de um jeito orgânico que parece acaso, mas é desejo, é querer, é vontade, é continuidade e a versão repleta de brasilidade da Alice Caymmi me fez pensar no amor, nos acasos, nos caprichos, nas pombagiras, nas amarrações e na maior dúvida que ultimamente eu e Graziella temos que se resume em uma palavra: por quê?
No espanhol do Peréz-Botija, o verso é “el amor te hace burla, se ríe de ti. / Mientras tú sigues ciego, sin saber qué decir”, mais ou menos como o amor chacota de você, ri de você, enquanto você segue cego, sem saber o que dizer, um jeito meio dicotômico e paradoxal das nossas constantes mal ajambradas teimosias amorosas, para continuar com “y deseas seguirle y decirle que no. / Que se quede, que vuelva, que comete un error”, de um jeito passivo, pois você quer segui-lo e dizer que não, que fique, que volte e que erre, taí o amor espanhol esfregando na nossa cara suas maliciosas verdades.
Pois bem, o que me interessa são as invertidas constantes que a gente consegue dar em qualquer normatividade, por isso prestei atenção na versão de Alice justamente nesse verso, e não é que sua voz invade numa revolta gradativa, anunciando que
O amor de pirraça, ele ri de você. Você fica parado, sem saber o que dizer e deseja segui-lo, e diz ele que não, que ele fique e que volte e que pegue a contramão.
Não sei se eu ouvi exatamente o que desejava, ou se ela realmente transgrediu o amor-desejo para os movimentos de ação sobre ele, por conta dele e anterior a ele, porque mesmo que o amor diga não, a gente vai.
Capa do single O Amor de Alice Caymmi, 2024. (Foto de Gustavo Zylbersztajn com arte de Grão Azevedo)
Imediatamente, eu me lembrei de um capítulo da minha tese em Ciência da Religião, Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil (BONINE, 2024), em que vários capítulos são sobre o amor e a nossa capacidade de conviver. Falo do amor das pombagiras em sexualidades da brasilidade (p. 141), do amor desejado em amarrações do amor (p. 149), do amor da convivência no capítulo terreiro, um espaço social (p. 163), também do amor pela dor em dororidade, as mães da dor (p. 175), do amor na mitopoética de Oiá-Iansã, com uma decisão, Oiá-Iansã, quem dança a dança já dançada (p. 188), da violência sistêmica que nos impede de amar, no capítulo cinismo, o contra-amor (p. 201), dos espaços sociais de amor, comunidades-terreiro e a prática amorosa (p. 207) e do amor como festa, Olubajé, a ritualização do amor (p. 219).
Talvez por isso faça tanto sentido para mim romper com essa ideia de acaso e perceber o quanto a gente insiste no amor, porque se ele “é a folha caída na terra, um ponto no mar, uma bruma espessa, um peso na alma, um sol que vela, um porquê, um acordo, não mais uma queixa", é porque a gente o aciona, o escolhe, o coloca diante de nós, toma decisões assertivas, contraditórias, expansivas, complexas, sofisticadas, improdutivas, esperançosas, céticas, pessimistas e até mortais.
Aí que a Alice inicia sua versão de O Amor com o verso “o amor é um raio de luz indireta” e encerra com “o amor te afoga de saudade de voltar a ser nada, e de repente ele pára e te vê. E tem pena". Embora os subterfúgios do desejo produzam muitas armadilhas em nosso cotidiano, fico com um dos maiores ensinamentos do amor elaborado pelo encantamento, pela nossa sujeitificação abundante e pelos ecos de nossas relações múltiplas e diversas: as amarrações de amor. Esse feixe de luz que mesmo indireto, revela que de acaso e em acaso, o que fica é a gente e o nosso fazer.
Entre minha casa e a antiga morada da Graziella, a encruzilhada que muitas vezes atravessamos e outras tantas ficamos parados, atentos a nossas indecisões cotidianas e vontades complexas, tem um poste com uma propaganda de macumbaria. Hoje me chamou a atenção o fato de a oferta estar explícita, mas os caminhos para a conquista terem sido roubados.
Cartaz de Amarração infalível no centro de São Paulo/SP, 2024.
Continua escancarado o serviço oferecido Amarrações de amor, mas os meios de contato foram arrancados. Minha esperança é a de que alguém foi lá e no afã desesperado (ou na ação milimetricamente calculada, mas com pressa), arrancou o telefone do cartaz para entrar em contato e conseguir o que deseja, um acaso só pra si.
No capítulo Padilhas do cotidiano (BONINE, 2024, p. 149), eu parto de alguns pontos de pombagira entoados e reverberados em nossas macumbarias para explicar o tanto que a gente ritualiza a vida de um jeito ontológico para produzir epistemologias e compartilhar metodologias, a gente é sofisticado demais e nesse assunto de amor, quem entende são as moças donas do corpo, das vontades, dos desejos, dos segredos e das gargalhadas.
Eu pergunto, em certo momento, “é possível amarrar alguém?” (BONINE, 2024, p. 150), eu a faço depois de pensar no ponto “dói, dói, dói, dói, dói, um amor faz sofrer, dois amor faz chorar" e na possibilidade de cantar (como já ouvi algumas vezes) que “dói, dói, dói, dói, dói, um amor faz sofrer, sem amor faz chorar". Voltando ao acaso e às insistências, a pombagira nos ensina que essa ideia produtivista, normativa, mercadológica e capitalista que temos de amor é sofrimento, mas sem o amor complexo e sofisticado que parte do desejo e da escolha cotidiana, a gente só vai fazer é chorar mesmo!
Vou compartilhar uma autocitação aqui, na qual digo que
Se nos preocuparmos apenas com o que cientificismo moderno e hegemônico nos permite perceber, não alcançaremos as subjetividades e os trânsitos de encantamentos operados na poética da relação de sujeitos plurais, nem os ecos- mundos de possibilidades que não cabem no reducionismo de contraste/síntese. O que nos interessa, nos feitiços e nas amarrações, são as brechas da secularidade nas quais o sagrado opera: as perspectivas de (re)existências baseadas na dúvida, na socialização de encantos, em desvios e em dribles na normatividade. (BONINE, 2024, p. 150)
Por isso, me fez tanto sentido a invertida que Alice Caymmi deu na sua versão de amor e no rasgo do cartaz com a propaganda dos serviços de macumbaria: nessas brechas estão não os nossos acasos, mas as nossas insistências.
Em uma das últimas conversas que tive com a Graziella, ela me disse que, ouvindo um ponto de Maria Navalha, que precisava de bater um papo com ela. Perguntei se era para conseguir desenrolar um amor bastante normativo (no pior de seu significado) e sacana (no máximo que um cis-heternormativo pode ser), para ela me responder: não, para desenrolar a mim mesma.
Talvez esteja aí o que melhor podemos reverberar em nosso cotidiano, principalmente quando nos desassociamos da ideia de indivíduo (largamente incentivada pela hegemonia) para nos aproximarmos da elaboração de pessoa (profundamente macumbeiro, encantado e ritualizado pela brasilidade). Não interessa insistir se o acaso não estiver do nosso lado, porque, para nós, o acaso tem nome de mulher, tem cheiro de perfume floral e gargalha a cada encruzilhada. Laroyê para esse amor!
Referências:
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
o amor é tudo, menos acaso.
Eu amo como vc transforma nosso cotidiano em linhas gostosas e lindas, sempre dá vontade de ter mais!