Corpo fechado é corpo possível
Encerrando as análises dos possíveis sambas do Salgueiro para 2025
Já quero iniciar este texto com o sacolejo de Xande de Pilares ao invocar, no início de sua gravação, com a intensidade de sua voz ímpar que quando longe se faz perto e quanto perto parece gritar ao longe, o brado de que
Toda no fundo da alma, na mente batuca, aqui, dentro do meu coração: Salgueiro. Minha escola de samba é escola de vida e motivo de tanta paixão. Eu adorei. Eu adorei as almas. Ah, eu adorei! Eu adorei as almas, em dias de hoje, eu adorei. É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar! Alô, Salgueiro, prepara o alguidar que lá vem macumba!
Anteriormente, eu avisei que deixaria o meu preferido para o final. Foi uma aventura ouvir os sambas concorrentes para representar o Salgueiro no enredo Salgueiro de corpo fechado. Dos que estão disponíveis no canal oficial da escola, eu escolhi quatro por vários motivos, mas principalmente por conseguir identificar neles a poética e a política que reverberam daquilo que defendo como devir macumbeiro, as ontologias complexas e sofisticadas da brasilidade.
Retomando um pouco nosso percurso até aqui, no samba defendido por Paulo César Feital entendemos como os ecos-mundos potencializam nossos processos de sujeitificação e de alteridade no Brasil por meio da macumbaria. São esses ecos produzidos pelos repertórios tanto ético quanto estético dos terreiros que garantem a nossa multiplicidade, a nossa diversidade e a nossa pluralidade. Quem não se identifica com o trecho “sem ter medo de macumba, que dirá de macumbeiro, se vier fazer quizumba, vá cantar noutro terreiro”?, como alegoria do nosso brado sistemático de (re)existência apesar das violências e dos encarceramentos do Brasil-nação?
No samba de Fred Camacho, aquele que entre as pessoas parceiras com as quais dividiu autoria, está o historiador e arruaceiro, Luiz Antonio Simas, o refrão também sistematiza o axé brincante e a multiplicidade de nossas experiências enquanto sujeitos que praticam o encantamento. Ao cantar, “Kiumba, desiste de mim que sou da macumba! No candomblé ou na linha de umbanda, na rua, na gira, venci demanda”, o que se canta é a poética e a política da insistência e da transgressão. Nada de romantizar a colonialidade, muito pelo contrário, mas oriunda de todo esse aprisionamento e assujeitamento abstêmio, apesar de todas as demandas, o samba canta o drible e a autoafirmação.
Na letra de Edu Chagas, esse comportamento transgressor é potencializado pela presença da malandragem, no caráter pelíntrico que estrutura as nossas ontologias arruaceiras e encanta os rituais da brasilidade. Mesmo quando cooptado por um Brasil-nação, o sujeito Malandro não se aprisiona a unicidade do corpo, não se restringe a alegorias de bom comportamento, como se fosse um ser crítico a todas as possibilidades do vir a ser. A malandragem é a escola da multiplicidade, por isso desejam domesticá-la, mas quem consegue? Ao cantar “Seu Zé me vale, no inimigo dá um nó. Se liga, moço, porque nunca ando só”, o samba brinca com a epistemologia transgressora de Zé Pelintra, detentor e praticante da malandragem.
Sambas lindos e importantes que fazem da prática macumbeiro do corpo fechado um corpo social de possibilidades, porque está consciência de um processo poético e político de corpo a manutenção de direitos e a garantia de permanência. Por isso, este texto é dedicado ao samba defendido por Xande de Pilares1 que em um verso sistematiza não apenas o devir macumbeiro, mas a proteção macumbeira dos corpos públicos e dos sujeitos cidadãos. Corpo fechado é sabedoria de axé compartilhada sem os segredos do terreiro, nas brincadeiras das ruas e na seriedade das festas:
Salve seu Zé, que alumia nosso morro,
estende o chapéu a quem pede socorro.
Vermelho e branco no linho trajado,
sou eu malandragem de corpo fechado.
Tanto para o carnaval quanto para o Salgueiro, a malandragem e o encantamento de Zé Pelintra não é novidade, é a manutenção desse axé brincante e do caráter transgressor que pluraliza a nossa ética e a nossa estética, garantindo nossas ontologias arruaceiras e nossas múltiplas epistemologias. Como meu campo de pesquisa é a mitopoética do discurso presente nesses sambas e como potencializa metodologicamente uma ciência da religião à brasileira, quero me dedicar única e exclusivamente a analisar as estrofes compostas para esse que é o meu samba predileto e Oxalá queira que seja o escolhido.
Antes, quero recuperar um trecho do texto do enredista Igor Ricardo e do carnavalesco Jorge Silveira, para que o nosso percurso de análise seja por meio do corpo, tanto como dispositivo de controle do Brasil-nação quanto dispositivo de possibilidade da brasilidade. Segundo os autores,
“em uma religião que celebra a vida, é fácil perceber que um corpo saudável é uma obrigação essencial. O corpo no candomblé alcança e representa o sagrado, traz sentimentos, sensações e emoções. (…) Somente o corpo doente pode encontrar essa cura; somente a ferida que dói, uma hora cicatriza”
Primeiro, eles invocam a presença múltipla do corpo nas ontologias de terreiro, tanto como produtor de saberes quanto como promotor das experiências desses saberes. Para as macumbarias, o corpo não é uma utilidade do sujeito, é, entre suas muitas possibilidades, uma via para as existências.
É esse corpo plural do devir macumbeiro que permite os cruzamentos incorporados, corporalizados e corporificados pela brasilidade. Tanto que, para os autores, na defesa do enredo, quando esse corpo está doente ele encontra a cura, porque a doença, para as mitopoéticas de terreiro, também é uma consequência da existência. Precisamos não confundir essa doença como a violência e o encarceramento coloniais, não é dessa disputa, por ora, da qual estamos falando. Esse corpo doente que permite transgressões tem mais a ver com as mandingas, as rezas, as benzedeiras e as pajelanças do que com os padecimentos subalternizantes da colonialidade, empregados como racismos, misoginias, sexismos, mandonismos, queerfobias etc.
Esse samba é a lembrança festeira (afinal, é carnaval) de que nossa multiplicidade é garantida por meio do nosso corpo e nossas experiências (no plural) enquanto sujeitos são compartilhadas pelos rituais da brasilidade, na poética e na política de nossas ontologias. Por isso, o refrão entoa que
Macumbeiro, mandingueiro, batizado no gongá,
quem tem medo de Kiumba, não nasceu pra demandar.
Meu terreiro é a casa da mandinga,
quem se mete com o Salgueiro acerta as contas na curimba.
Ser macumbeiro, mandingueiro e batizado no gongá são formas de existências estruturadas na corporeidade da brasilidade, é preciso ser brasileiro e estar enredado a nossas ética e estética para percebermos com a sensibilidade necessária as alteridades presentes nesses corpos que habitam a casa da mandinga, a casa dos ecos-mundos, da sujeitificação abundante, no axé brincante e das (re)existências encantadas.
Prepara o alguidar, acende a vela,
firma ponto ao Sentinela, pede a benção pra Vovô,
faz a cruz e risca a pemba,
que chegou Exu Pimenta e a falange de Xangô.
Tem erva pra defumar, carrego o meu patuá,
adorei as almas que conduzem meu caminho.
Ê mojubá, Marabô, invoque a lua,
que o povo da encruza não vai me deixar sozinho.
Nessa estrofe, a descrição da materialidade dos terreiros nos aproxima do que, no devir macumbeiro, conceituamos como ritual da brasilidade, preparar, acender, firmar, pedir, fazer a cruz e riscar a pemba são práticas de encantamento que não desassociam a poética e a política dos corpos da macumbaria, como se o fizessem como alegorias sagradas em meio a condutas seculares, esses verbos pontuam os cruzamentos possíveis de nossos corpos brasileiros, nas nossas transgressões.
Toda essa preparação descrita no samba não é apenas a descrição de um ritual religioso, é a incorporação da ética e da estética do devir macumbeiro a nosso cotidiano. Adorar as almas que conduzem caminhos não está circunscrita às giras de Pretos-Velhos, mas às relações seculares que estruturam a nossa sociabilidade, na consciência de que os corpos viventes têm tempo existencial, têm amadurecimentos, têm jovialidades, têm sensibilidades e, por isso, precisam ser respeitados em diversas idades.
Sou herança dos malês, bom mandingo e arisco,
uso a pedra de corisco pra blindar meu dia a dia.
No tacho, arruda e alecrim,
bala de chumbo contra toda covardia.
Tenho a fé que habita o sertão
de lampião, o cangaceiro,
Feito Moreno, eu vou viver,
mais de cem anos, no meu Salgueiro.
Pela beleza dessas estrofes, quero pontuar o caráter histórico dos sambas-enredos na Avenida. Fazer alusão aos malês e recuperar suas revoltas para, na contemporaneidade, cruzá-las num tacho de arruda e alecrim com as balas de chumbo sistematicamente disparadas contra os que protestam por direitos, o samba pretende inverter essa violência e disparar as balas contra o comportamento covarde.
No corpo da brasilidade, estão circunscrito o saber sertanejo, as rezas, as benzedeiras, o cangaço e as ontologias plurais por meio das fés também incorporadas nas flores de macambira, a raiz de alimento do solo árido.
Daí o samba também cantar que
Sou espinho qual “fulô” de macambira,
olho gordo não me alcança.
Ante o mal, a pajelança pra curar,
sempre há uma reza pra salvar.
O nó desata, liberdade pela mata,
e os mistérios do axé, meu candomblé,
derruba o inimigo um por um,
eu levo fé no poder do meu contra-egun.
A flor tem espinho não do mesmo jeito que o mal tem o bem. Para o devir macumbeiro não interessa a binaridade, mas a complexidade e a sofisticação das ontologias transgressoras. Por isso, para desatar os nós, é preciso que eles existam. Os mistérios do axé que derrubam os inimigos são materializados no contra-egun amarrado no braço, na pajelança, nas rezas e na fé, práticas potencializadas pelos rituais das brasilidades, formas de incorporar, corporalizar e corporificar nossos saberes que, sim, são encantados.
Quando a gente pensa na ética e na estética reverberadas pela mitopoética dos sambas-enredo, a nossa análise discursiva é estruturada no conceito de exunouveau do Edimilson de Almeida Pereira, principalmente nos cruzamentos plurais, múltiplos e diversos que as produções artísticas de alteridade têm experimentado e proporcionado aos nossos processos de sociabilidade.
Resumindo, o caráter exusíaco é uma das principais contribuições das ontologias de terreiro e uma das nossas defesas de porque o devir macumbeiro é revolucionário para as existências em nosso país. Exu é o orixá da transgressão, da imprevisibilidade e do movimento, é o princípio de nossas reflexões e toda a sua complexidade e sofisticação, por isso, não está apartado de nossa epistemologia festeira.
O Salgueiro, ao propor o enredo defendendo o corpo fechado, tensiona a disputa entre o Brasil-nação e a brasilidade, tendo justamente o corpo (não só a sua materialidade) como experiência e saberes em jogo. Enquanto o projeto institucional violenta o corpo, objetifica as vivências e produz sobras de vida, o devir macumbeiro incorpora, corporifica e corporaliza, por meio dos rituais, as (re)existências encantadas.
A gente se aproxima da festa para que a nossa continuidade, enquanto sujeitos sociais, seja possível. A nossa compreensão de comunidade é o carnaval, por isso ele é tão atacado. Enquanto evento, ele é a própria representação desse corpo político e poético que as nossas ontologias arruaceiras produzem.
Para o carnaval de 2025, o Salgueiro desfilará a sabedoria por trás de um corpo que se fecha para a violência sistêmica, para a subalternização colonial e para as políticas de morte, apresentando as mitopoéticas de transgressão que encantam o nosso cotidiano.
Corpo fechado são corpos possíveis!
Referência:
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.
Parceria de Xande de Pilares com Pedrinho da Flor, Betinho de Pilares, Renato Galante, Miguel Dibo, Leonardo Gallo, Jorginho via 13, Jefferson Oliveira, Jassa e W. Correa
agora fiquei na dúvida entre xande e simas…