Devir macumbeiro: a festa, o jogo e encanto
Não falo do jogo do bicho em minha tese, mas acredito que cada um dos bichos fale por mim
Nesta semana eu defendo a minha tese em Ciência da Religião na PUC de São Paulo. Em uma sexta-feira, dia do dono do meu orí, estarei diante de uma banca (por sinal composta por pesquisadores e pesquisadoras que muito admiro, o que é um privilégio!) para apresentar o resultado de quatro anos de sistematização, algo que dei para chamar de devir macumbeiro e que, fazendo alusão ao Luiz Antonio Simas, resolvi compartilhar semanalmente neste espaço para “disparar questões e produzir material acessível, não acadêmico, que pode ser lido pelo policial que eventualmente reprime o jogo - e fora da hora de serviço faz sua fezinha -, pelo apontador que ocupa uma esquina qualquer da cidade recolhendo os palpites e pela vovó que sonhou com a sepultura do falecido marido e resolveu apostar na milhar do número do túmulo” (SIMAS, 2024, p. 8).
O historiador abre o seu livro Maldito invento dum baronete com essa apresentação, explicando que falar do jogo do bicho, em nosso país, é "passear - entre o delírio, o horror, o sonho e o cotidiano - nos ventos encruzilhados da cidade” (SIMAS, 2024, p. 9). De acordo com as categorias conceituais que desenvolvi em minha tese, a complexidade e a sofisticação de nossos arranjos e (re)arranjos sociais são fundamentais para que a gente consiga (re)elaborar o nosso devir, produzindo formas de ser e de estar no mundo que nos tornem pessoas em vez de padecermos sob a alcunha de indivíduos.
Simas fala do jogo do bicho como um saber devedor da ética e da estética da brasilidade, eu concordo plenamente. Por conta do recorte do meu objeto, conceituei o devir macumbeiro como o encontro de três campos políticos e sociais da nossa encruzilhada ontológica: o samba, a macumba e o cotidiano, mas as esquinas são feitas, em sua maioria, do cruzamento de quatro caminhos e, agora, entendo o bicho como essa possível vereda, porque
“Escapando desse dualismo entre a romantização e a demonização igualmente acríticas do jogo do bicho, as vinte e cinco curtas histórias deste livro - uma gota em um oceano de relatos, estudos, memórias e histórias que ainda precisam ser escritas - são propositalmente encruzilhadas em um caldeirão que mistura dramas urbanos, sonhos, superstições, mandingas, contravenções, crimes, horrores, arte, sociabilidade das ruas, fé, desespero, vivências e sobrevivências. (…) mais enigma que solução, mais nublada que solar, (…) pulsa nas artimanhas cotidianos do comum, entre balas traçantes, repiques do samba, louvores de pastores, pontos de macumba, sirenes, choros descompassados, gargalhadas, e uma vaga esperança do dia melhor que pode se concretizar na interpretação feliz de um sonho” (SIMAS, 2024, p. 172)
Acredito, enquanto cientista da religião e, também, como um ser político e festeiro, que qualquer binariedade está à serviço da colonialidade e do encarceramento hegemônico, por isso, nada me interessam, ou, quando as percebo, é para transgredi-las, dribá-las ou combatê-las. Certo e errado é normatividade, é conduta de moral simplificada, nos afastam de nossas potencialidades e nos reprimem.
Antes de continuarmos essa conversa, preciso pontuar que tanto a ética quanto a estética que me interessam parte das possibilidades e mora nas esquinas, portanto, pertencem a Exu. A ética exusíaca e a estética exunouveau (essa emprestada do acadêmico Edimilson de Almeida Pereira, excelente poeta e incrível pesquisador do discurso e da literatura) são propostas políticas e poéticas que nos sujeitificam e conferem alteridades a cada uma das pessoas que se (re)elaboram por meio da brasilidade. Por isso, o devir macumbeiro ecoa da nossa “esperança do dia melhor”, da continuidade e da manutenção.
Meu repertório de encantamento é incentivado desde que eu me entendo por gente, desde muito pequeno por meio de meu avô e minha avó maternos. Cresci no meio deles, cria dessa comunidade que se estendeu para a minha tia, irmã da minha mãe, minha tia-avó que morava longe demais, mas de vez em quando ia nos visitar com seus olhos de novidade, vizinhas que apareciam no meio da tarde para tomar café e contar fofocas ou casos que dependiam da minha suspensão de crença (ou inocência infantil) para serem críveis, moradores em situação de rua que rodeavam a banca de jornal do meu avô e se entretiam comigo e com minhas histórias sem pé nem cabeça, radialistas, políticos de caráter duvidoso, banqueiros que ainda transitavam com cruzeiro, enquanto eu comprava chocolates com real, médicos sem especialização, farmacêuticos com diploma de medicina e os jogadores do bicho.
Como consequência desse repertório que adquiri e, em muitas vezes, fantasiei sendo criança no interior de São Paulo, desenvolvi uma tese de doutorado que nos complexifica e nos sofistica enquanto seres humanos que praticam sociabilidade. As encruzilhadas (re)elaboradas pela brasilidade me possibilitaram sistematizar um devir macumbeiro que contemple as nuances sociais, políticas, culturais, econômicas e religiosas de sujeitos brasileiros por meio de campos ontológicos, epistemológicos e metodológicos organizados em Nós falamos por nós (BONINE, 2024, p. 54), Nós sabemos dançar (BONINE, 2024, p. 104), Nós sabemos conviver (BONINE, 2024, p. 160), Nós sabemos brincar (BONINE, 2024, p. 237) e Nós sabemos morrer (BONINE, 2024, p. 295).
Esses percursos organizam e apresentam éticas e estéticas muito próprias de nossos repertórios e de nossas sociabilidades, por isso, as ações e as práticas políticas e poéticas reunidas no devir macumbeiro não se restringem apenas a sujeitos que processam uma fé oriunda das terreiragens, mas contemplam o complexo e sofisticado ritual da brasilidade (re)elaborado em nossas ruas. Voltando ao Simas, a gente joga no bicho porque acredita na possibilidade do ganho, padece sob o desespero da falta, mas principalmente, porque sonha (SIMAS, 2024).
O mais curioso é que esse negócio de bicho é um invento capitalista, o “maldito invento dum baronete” como poetizou Olavo Bilac, aquele poeta reacionário e metido, que para se tornar a loteria do pobre, o fluxo de caixa da contravenção e o bode expiatório do crime organizado precisou das disputas e dos conflitos sociopolíticos que só a brasilidade sabe empreender.
Escrevo tudo isso para dizer que gostaria de ter acrescentado os vinte e cinco bichos, do avestruz à vaca em minha tese, mas não o fiz, mas tudo bem, esse negócio de fazer pesquisa é um barato que nos permite muitos vai-e-volta, e nessa circularidade, a gente sempre se revê, sempre produz um artigo aqui e outro ali, e nessas práticas, segue pensando, problematizando, elaborando hipóteses e chegando a poucas conclusões.
O devir macumbeiro é o encontro de três terreiros: o do samba, o da macumba e o do cotidiano. Nas tensões entre a fé do Brasil-nação e o ritual da brasilidade, o encantando e as possibilidades que surgem dos nossos processos de (re)elaboração são o que me interessam. Estava pensando quando comecei a pensar na política e na poética de nosso repertório social, não consigo chegar a um momento adequado, mas enquanto fantasia, vou compartilhar uma situação que, com certeza, foi morar em meu inconsciente e reverbera, agora, como conduta pessoal.
Meu amor pelo carnaval talvez tenha sido estimulado pela rixa futebolística entre meu avô materno e meu pai. Uma rixa cordial, diga-se. Em 1994, eu amava cantar “me leva que eu vou, sonho meu. Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu”. Eu fui uma criança que se elaborou no colo encantado da minha avó materna entre confetes, serpentinas, canutilhos, lantejoulas e retalhos de tecido.
Meu aniversário de 2 anos, com meu avô e minha avó.
Acontece que em 1995, enquanto meu pai e minha mãe pulavam o baile de carnaval, assisti com meu avô materno ao desfile da Gaviões e o clássico e apoteótico: “me dê a mão, me abraça: viaja comigo pro céu. Sou gavião, levanto a taça. Com muito orgulho pra delírio da Fiel”.
Meu pai palmeirense, entusiasta do surdo e da caixa, burocrata frequentador de botequim, em vez de se desesperar, estimulou meu amor pela Verde e Rosa. Fazer o quê? Ele mesmo se tornou um mangueirense nato. Entre as disputas e idiossincrasias de minha família, aprendi o importante é carnavalizar a vida: festejar o cotidiano.
Meu pai e meu avô materno são minhas inspirações carnavalescas, o compasso do meu surdo na avenida e assim eu sigo minha vida: um filósofo de botequim sambando na calçada! Acredito que aí more as fagulhas do meu devir macumbeiro. Nesse acordo festeiro, eu entendi que entre possíveis disputas e conflitos, a nossa poética é capaz de produzir harmonias ou ao menos colocar em suspensão as nossas dicotomias, porque a gente dribla cotidianamente o que nos afasta, pelo simples prazer praticar a convivência.
Nesta sexta-feira, defendo a minha tese de doutorado e, por uma chatice da vida, meu avô e minha avó, a quem dedico a pesquisa, não estarão presentes ali comigo, mas a tese é dessas duas pessoas, sobre elas e para elas, portanto, ali estará essa filha de Omulu e esse filho do Oxóssi. Aproveitarei para pedir a meu pai, que tanto faz suas apostas nas loterias das esquinas, acreditando na possibilidade do ganho, que troque a Loteria Federal pela tiazinha do bicho, acredito que vai dar águia.
Se eu não falo do jogo do bicho em minha tese, é por mero acaso da falta de espaço e da segmentação do objeto, mas acredito cada vez mais que cada um dos bichos fale por mim, porque está na possibilidade do jogo e na imprevisibilidade da aposta o nosso esperançar.
Nesta semana, saiu mais um artigo meu em que analiso a ética e a estética de samba-enredo e literatura. Dessa vez, falei sobre o Basta! da Gaviões da Fiel de 2022 e o conto O Moleque do Lima Barreto, publicado em 1920, salvo engano. Você pode ler aqui.
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.
SIMAS, Luiz Antonio. Maldito invento dum baronete. Uma breve história do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2024.
boa defesa! depois nos conte como foi! 😊
Saravá. Que bom assunto. Muita brasilidade. Conheço bem a realidade do jogo do bicho. Convivi desde minha infância com ele. Vi de perto bicheiros, banqueiros e toda a fauna em torno. Boa defesa! E axé!