Devir Macumbeiro: a Universidade precisa sambar!
A sistematização de uma Ciência da Religião à brasileira
Na sexta-feira passada, dia 2/8, defendi minha tese no Programa de Pós Graduação em Ciência da Religião da PUC/SP. Quando paro e penso em meu percurso acadêmico, tanto no mestrado quanto no doutorado, reconheço o quanto foi necessário reverberar macumbaria em uma Universidade que está acostumada a reproduzir a fé do Brasil-nação e a elaborar uma ciência que tanto flerta com o poder colonial.
Como disse no título deste texto, está mais do que chegada a hora de a Universidade sambar, caso contrário, não conseguiremos alcançar a complexidade ética e a sofisticação estética de nossa brasilidade. Peço a licença de vocês para compartilhar a introdução da minha tese, acredito que, por estar emocionado agora com o título de Doutor em macumbaria, não conseguirei falar mais (ou melhor) do que já falei, portanto, conto com a generosidade de cada pessoa leitora para acompanhar o que reconheço ser um percurso ególatra, mas ao mesmo tempo de bastante reverência a quem o percorreu antes de mim, percorre comigo e percorrerá depois. Axé!
Laroyê, Exu!
Para começarmos esta tese, precisamos pensar sobre o conceito de devir. Há uma canção do cantor e compositor Caetano Veloso, cantada por ele e por seu amigo e parceiro Gilberto Gil, em que entoam “mas alguma coisa acontece no quando agora em mim”. Os dois compartilham a sabedoria que existe em se fazer um samba, a necessidade de se fazer um samba, e defendem a ideia de que o samba é um grande poder transformador, por existir na confluência entre o prazer e a dor: sendo pai de um e filho da outra.
A ideia de devir, para nós, constituiu esse quando. Essa ideia de tempo e de modo, permitindo um caminho, um percurso, um tornar-se. Acontece que nos desprendemos dessa filosofia etérea do rio e do ser humano, precursora da angústia existencial da transformação compartilhada no Ocidente, defendida por Heráclito, de que não se pode mergulhar duas vezes no mesmo rio, porque as águas não são as mesmas por conta da fluidez.
Nós nos aproximamos do devir macumbeiro, da nossa capacidade de experimentar o quando por meio da ética exusíaca e da estética exunouveau (PEREIRA, 2023), entendendo a confluência da encruzilhada como oportunidades de caminho, não como angústias paralisantes. O poder institucional, a fé do Brasil-nação, já é armadilha de subalternização e de extermínio de identidades complexas e sofisticadas, está no devir macumbeiro a nossa capacidade de nos elaborarmos e (re)elaborarmos enquanto sujeitos, articulando caminhos individuais e coletivos no ritual da brasilidade.
A coisa que acontece no quando cantada por Caetano e Gil reforça a ideia de que o samba existe porque nós, sujeitos sociais, somos tristes. A festa é uma alegoria da nossa capacidade de existir, de nos transformarmos pelo imprevisto. Em uma tese na qual falaremos de samba, de macumba e de cotidiano, pensar no quando, em suas dimensões de tempo e de modo, é muito necessário. Mesmo que possamos percorrer caminhos alternativos ao entendimento de tristeza, sabemos que o nosso devir macumbeiro constitui a nossa capacidade de elaboração enquanto sujeito, pois a alegria não necessariamente é sinônimo de festa.
Entendemos que o devir macumbeiro é consequência da encruzilhada, das possibilidades e das imprevisibilidades dos caminhos. Por isso, não podemos deixar de saudar Exu: laroyê, meu véio. Nós, aqui, vamos divinizar os homens e as mulheres que compõem a brasilidade e humanizar os deuses e as deusas. O que Luiz Antônio Simas, ao pensar a história carioca, classificaria como a atitude para “construir uma civilização amorosa nos confins do Ocidente” (SIMAS, 2019, p. 113).
Sim, os confins do Ocidente é, também, o Brasil. Por isso, como um drible a essa pompa de projeto nacional que nos educa a partir da dor e do comportamento moral sem nuances de cor nem brilho, propomos nesta tese pensar o terreiro como um encontro de lugares fundamentais para constituir a brasilidade: o samba, a macumba e o cotidiano.
Pensemos esta tese como uma festa. Se formos falar de terreiro, de sua epistemologia, precisamos entender o que sustenta sua concepção: a festa. Enquanto um lugar sério, de aprendizagem, de constituição moral e complexidade ética, um ambiente político e de estética própria, o terreiro é um lugar de festa, e toda festa, mesmo improvisada, espontânea ou apoteótica, requer uma preparação.
Patrícia Rodrigues Souza, Antonieta Antonacci, Ênio José da Costa Brito, eu, Cláudia Alexandre e Cláudio Pimentel. (Banca arguidora da minha tese de doutorado na PUC/SP)
O carnaval tem ensaio-geral, a macumba tem o despacho do padê de Exu ao meio-dia e nossas festas de aniversário têm a tarde toda do sábado enrolando brigadeiro, beijinho e cajuzinho. Assim nós aprendemos. Assim nós chegamos até aqui: na defesa de um doutorado.
Durante a qualificação, meu orientador Ênio José da Costa Brito e os primeiros leitores generosos destas linhas, o doutor e a doutora em Ciência da Religião Cláudio Pimentel e Patrícia Rodrigues Souza sugeriram uma introdução conceitual, em que fossem apresentados os conceitos a serem desenvolvidos (complexos e sofisticados, como o terreiro!) e a mim mesmo. Mas para falar de terreiro, da brasilidade e de mim, preciso falar de minha avó Suely e de meu avô Marcello.
Ostentosos com seu ípsilon e seus dois éles, essa mulher de Omulu e esse homem de Oxóssi me ensinaram no dia a dia, durante toda a minha formação, que o terreiro é um lugar de desenvolvimento, de circunstância e de encontro: é a festa da vida. E, como o Simas diz, a gente festeja não por ser feliz ou até mesmo boçais, festejamos porque a vida requer coragem, mais ou menos como Guimarães Rosa alertou, requer que busquemos a felicidade nas horinhas de descuidos5 e a comemoração de nossa existência a todo instante.
Meu terreiro é, também, a Universidade. É minha feitura de santo pelas mãos de Adokunle de Euá. É minha mãe Suzelena e meu pai Eduardo, uma mulher de Ogunté e um homem de Ogum que tomaram decisões para além de mim, privilegiando o que consideravam ser importante para eles, para mim, para nossa família.
É minha tia Suzeli que, como seu orixá Logun Edé, participou da minha formação com cuidado e zelo. Eu sou o repertório dessas pessoas, uma extensão que se confunde com memórias apreendidas (e aprendidas) pela oralidade. São minha memória do corpo, das músicas, dos odores, meus conflitos, minha ambiguidade, meu caráter: o chão do meu terreiro, em outras palavras, o exemplo empírico da sistematização conceitual desta tese.
São meus amigos e amigas que acompanharam e acompanham o meu cotidiano, constituindo um terreiro nosso. É Amanda, também de Ogunté, a irmã que a vida me deu e Graziella, com quem divido o orí (cabeça) de Oxaguiã, nos mistérios, no atrevimento e na alegria de quem veste branco para farrear e guerrear. Caetano e seu mistério, que me faz rir e ao mesmo tempo me provoca subversões de pensamento e dribles, como um bom filho de Exu. É a Oiá-Iansã de Rubens que canta a imprevisibilidade e as possibilidades a meu lado como um carnaval, sua concentração e apoteose.
Nessa importância cotidiana, é minha tia Cibele, igual a seu orixá Ossain, o assobio da mata, a sabedoria que guarda as soluções. Depois de adulto, me atrevi a descobrir os mistérios da cabaça graças a ela. E mais importante: é minha irmã Fernanda, de Oiá-Iansã. Costurando minha linha existencial, ela carrega o orí que é meu odu, ou seja, sua cabeça e sua essência cruzam meu destino. Esse é meu terreiro e minha percepção cotidiana da malandragem, da padilhagem, da criançagem, das pessoas que aprendem pelo corpo, que driblam, apesar dos infortúnios, o dia a dia com atrevimento.
Apresentar o terreiro como uma alternativa epistemológica à hegemônica, na Ciência da Religião, é um caminho que não se percorre sozinho: por isso, não falo por mim, falo por nós. Patrícia Rodrigues Souza e seus ensinamentos de Religião Material, Cláudia Alexandre e seu samba, seu orí dourado, seu conhecimento profundo enquanto mãe de santo e doutora na disciplina, Cláudio Pimentel e a troca de aprendizagem no grupo de pesquisa Veredas, constituem também esta pesquisa.
Meu orientador Ênio é o meu mais velho. Na lógica de terreiro, a ele reverencio como um saber profundo. Esta tese é acadêmica, é fruto de uma pesquisa contínua que, de alguma forma, começou não com a minha feitura de santo no candomblé, mas com o meu nascimento em uma família materna de ancestralidade: aprendi nas ruas, nas rezas, com as mulheres, no botequim, no amargor do álcool, na doçura das sobremesas, por meio de fofoca, na confusão, no silêncio e, também, na normatividade.
Sobre samba, macumba e cotidiano, Luiz Antônio Simas, dona Helena Theodoro e Milton Cunha também são intelectuais desses terreiros a quem reverencio com admiração. Esses três corpos ritualizam a brasilidade em suas complexas e sofisticadas ética e estética.
Esta tese é a reunião sistemática de diversas leituras acadêmicas e da experiência empírica de um ọmọ (filho) Oxaguiã, iniciado no candomblé Ketu e que viveu e vive os mistérios de se perceber enquanto rito da brasilidade. Toda a passabilidade política e social experimentada por mim, enquanto um homem branco, permitiu que eu elaborasse outro espaço de disputa na constituição de um terreiro e essa leitura não pode ser negligenciada nesta tese.
Por isso escrevo esta tese na terceira pessoa do plural. Consigo sistematizar uma malha teórica para conceituar o devir macumbeiro porque outros pesquisadores e pesquisadoras pensaram a brasilidade por meio do cotidiano de terreiro.
Entendemos, ainda, que oferecer uma sistematização da epistemologia de terreiro como um método para a Ciência da Religião não é o fim de uma trajetória acadêmica, é apenas mais uma batida sincopada do surdo, a preparação do padê, o primeiro toque da ramunha, o grito chamando para o quintal: nós só estamos começando.
Mais uma vez, celebrando as palavras de Simas, desejamos que depois da leitura desta pesquisa “cada um tenha o direito de encontrar o mistério do que lhe é pertencimento, em gentileza e gestos de silêncio, toques de tambor e cantos de celebração da vida” (SIMAS, 2019, p. 113). E que isso seja reconhecido e legitimado como um conhecimento, também, acadêmico. Laroyê, Exu!
Muito me honra cada pessoa leitora que ainda estará encruzilhada comigo nesse percurso acadêmico, precisamos cada vez mais reverberar esse axé que é construir uma ciência mais do que decolonial, brasileira!
Aproveito este espaço para avisar que amanhã, dia 6/8, será divulgada a premiação do Jabuti Acadêmico 2024, e Cláudia Alexandre, minha amiga, mestre do samba, doutora em Exu-mulher, arguidora de minha tese, escritora do prefácio de meu livro Embranquecimento do candomblé? (Pluralidades, 2024), concorre à melhor tese de Ciência da Religião e Teologia como seu Exu-mulher e a matriarcado nagô (Fundamentos de axé, 2023). Exu vai à premiação e com agô, ganhará!
A quem possa interessar, deixo a recomendação da leitura deste trabalho que é um tratado da multiplicidades dos terreiros.
ALEXANDRE, Cláudia. Exu-mulher e o matriarcado nagô. Rio de Janeiro: Fundamentos de axé, 2023.
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.
parabéns, doutor! 👏👏👏
Que coisa mais linda e boa e feliz <3