Em busca da pombagira Marquesa
Tão dizendo por aí que dona Domitila tá baixando em terreiro...
Participei de uma comunicação em um Colóquio de Religião, Pluralismo e Diálogo, em Belo Horizonte, em que apresentei um pouco da circularidade ontológica de Madame Satã na nossa sociabilidade e na nossa capacidade de produzir conhecimento. Pois muito que bem, na hora das arguições e sugestões, o Alex, mediador de nosso grupo, perguntou se eu considerava que a figura de João Satã foi moldada e experimentada por meio da malandragem de terreiro, mais precisamente de Zé Pelintra.
Uma pergunta bastante complexa. Se formos pensar em seu Zé, precisamos assumir sua multiplicidade e sua diversidade, porque singularidade e individualidade não cabe em toda a sua existência. São muitos Zés que baixam por aí. Respondi a ele que acreditava ser um trânsito mais rebuscado e cotidianamente percorrido pelos seres viventes e supraviventes na manutenção da nossa macumbaria. Tantos Zés constituíram o que João Satã foi e João Satã constituiu o que muitos Zés ainda são. Em exemplo prático, tem Madame Satã baixando em terreiro, seja como malandro ou como catiço, o que interessa mesmo é perceber que o arruaceiro se encantou e se encanta, o que revela a nossa capacidade latente de se (re)elaborar.
Essa comunicação fez com que eu me lembrasse de outra macumbaria interessante que, supostamente, ocorre por aí: tão dizendo que a Marquesa de Santos, a dona Domitila, a amante de D. Pedro I, anda baixando em terreiro como pombagira. Nunca vi, mas desde que me contaram, acreditei.
Enquanto cientista da religião, assumo uma preocupação sobre a nossa perspectiva hegemônica e fetichista ao pesquisar e escrever sobre religiosidades e percepções encantadas de sociabilidade que não sejam as monoteístas e, principalmente, as cristãs. No Brasil, somos assombrado por uma colonialidade e por um esforço sistemático de controle e encarceramento que reproduzimos em nosso fazer científico.
Não me assusta nem me surpreende pensar que dona Domitila anda baixando em terreiro. Em seu livro Pedrinhas miudinhas, o historiador e profundo conhecedor das ruas brasileiras Luiz Antonio Simas escreveu defendendo o direito de cada um e cada uma de encontrar “o mistério do que lhe é pertencimento, em gentileza e gestos de silêncio, toques de tambor e cantos de celebração da vida" (p. 113). Concordo, mas me apegando também a outro brado do historiador, se tem algo que a gente sabe fazer, é subverter mundos e bagunçar coretos.
A gente elabora formas de vida porque tem um Brasil-nação produzindo sobras de vida, uma nação, inclusive, da qual dona Domitila, essa que dizem baixar em terreiro como pombagira, forjou e instrumentalizou por meio de sua pregação pouco heterodoxa, mas ainda colonial. Acontece que as macumbarias são territórios de possibilidades, espaços de sociabilidade e de manutenção de algo muito caro ao nosso processo de existência: a construção de sujeitos e de suas alteridades.
Se sairmos dizendo por aí, no ano de 2024, que a Marquesa de Santos tá perambulando por aí, baixando em cavalos de santo, dando passe, bebendo marafo, balançando leque e chacoalhando a saia, a extrema direita brasileiras ficará de cabelo em pé, se esconderá debaixo de seus rosários ou aumentará o dízimo neopentecostal em busca de milagre, sagrada seja a família imperial, muito embora dona Domitila seja um arremedo pouco privilegiado dessa casta, por ser amante.
Eis aí o ponto que mais me interessa: sua existência já foi pautada pelo desvio. Vivendo no limiar daquilo que a gente pode entender, na contemporaneidade, como passabilidade e exclusão. Embora à parte, seu título nobre, seus acessos, seu domínio, também o mandonismo, o classismo e a colonialidade foram cartas a seu favor. Então, esse negócio de subverter mundos é prática da brasilidade, da nossa capacidade de ser e de estar com alteridade e sujeitificação em um cotidiano em disputa, por isso, acredito eu que dona Domitila não tem baixado em terreiro porque, depois de morta, entendeu os encantamentos da vida, pelo contrário, tenho pensado que esse chamado tem mais a ver celebração desviante da curimba do que com a consciência da morta-viva.
A nobre brasileira, a Domitila de Castro Canto e Melo, recebeu seu título nobiliárquico do próprio imperador dom Pedro I, seu amante. Essas tramoias e jogadas bem-sucedidas que o império soube muito bem fazer para tentar se consolidar, mesmo que às duras penas das sobras. Ao contrário do que muita gente pode pensar, ela é brasileira, nascida em São Paulo, em 27 de dezembro de 1797 e morta 3 de novembro de 1867, também em São Paulo, o que nos facilita entender seu túmulo estar reservado no Cemitério da Consolação, no centro da cidade, ali na meiúca entre a avenida Paulista, o bairro da Bela Vista e de Higienópolis.
A Marquesa em 1865
Vale lembrar que dona Domitila de Castro foi primeira-dama da imperatriz Leopoldina, o que facilitou seu acesso de amásio. Esse preâmbulo é só uma pontuação interessante para a gente perceber que sua atenção corporificada, corporalizada e incorporada1 sempre ressoou em sua existência. A Marquesa ao elaborar uma relação com o seu corpo, a fez com abundância, isso não se pode negar. O que nos leva para uma matéria da Folha de São Paulo de 2 de novembro de 2019 com o título Túmulo da Marquesa de Santos, em São Paulo, vira símbolo para prostitutas.
Por símbolo, a gente pode entender como terreiro, na capacidade complexa e sofisticada que a gente tem de inventar e improvisar lugares de encantamento. Símbolo é coisa de uma secularização ou de uma institucionalização desencantadas que pratica metonímias sociais para classificar o que não alcança, porque, o fato é o seguinte: o túmulo da Marquesa virou um lugar de despacho.
A Marquesa em 1865 e seu túmulo do Cemitério da Consolação em São Paulo
Tem muita gente que vai lá pedir coisa para a morta-viva. Falar que são as prostitutas fica a cargo do jornal, porque eu mesmo não fui lá para saber. Minha hipótese, depois de ler o livro do Chico Felitti, Rainhas da noite - As travestis que tinham São Paulo a seus pés, é a de que tanto mulheres cis quanto trans que circulavam o meretrício no centro de São Paulo, entenderam o jazigo da Marquesa como um lugar de expurgação, de encantamento, de sujeitificação, de aclamação, de análise psicológica, de conversa, de fofoca, de pedido e de aceitação. Pois bem, morta, a Domitila se encantou.
Eu não sossego, prometo voltar com novidades mais contundentes sobre isso. Acredito que foi alguém com relação bastante estreita com a Marquesa e devota de zelo para com seu túmulo que a levou para as macumbas, autorizou que baixasse em seu corpo, potencializou e compartilhou aquilo restrito a um diálogo muito íntimo. Por que aconselhar e ajudar apenas uma, se a morta-viva pode ressoar por aí e atender mais gentes?
Acontece que eu não sei. Não vi dona Domitila por aí. Só que não acredito que seja apenas subversivo baixar em terreiro, pois está subvertendo exatamente o quê? A imposição do Brasil-nação? Não. Se a Marquesa estiver mesmo se incorporando por aí, acredito que esteja gargalhando da cara dos conservadores, baforando na normatividade encarceradora e aprendendo o quão escrota foi em vida, até mesmo porque pombagira nenhuma vai deitar pra bonita!
Prometo voltar com mais dessa fofoca.
Vou falar mais e melhor disso depois, mas podemos dizer que as nossas (re)elaborações cotidianas, por meio do devir macumbeiro, possibilitam que a gente incorpore, corporifique e corporalize as nossas multiplicidades e diversidades éticas e estéticas. A gente não é um corpo, nem ocupa um corpo, nem tem um corpo, acontece que por sermos seres viventes e, também, supraviventes, nós temos uma capacidade complexa e sofisticada de transitar e de transgredir por meio do corpo, experimentando outras experiências, tanto na construção de memória, quanto na perspectiva do esperançar e do socializar. A gente não desgarra do corpo, como o positivismo tenta nos incutir o tempo todo, na fabricação de indivíduos produtivos, a gente pratica o nosso devir se tornando pessoas, estabelecendo comunidades e permitindo que o nosso corpo goze de sua abundância.
Por favor, volte com mais dessa fofoca!