O pluralismo encantado de junhos festeiros
Salve João e a multiplicidade ontológica do devir macumbeiro
Antônio, João e Pedro sempre me instigaram, um misto de curiosidade fantasiosa com encantamento ingênuo. O casamenteiro e exusíaco, o profeta cujo carneirinho no lombo nos protege da ira divina e nos aproxima da justiça secular e o portador das relíquias profanas, das chaves do céu e das chuvas, minha maior admiração, a cada trovão julgava a faxina barulhenta e o arrastar dos móveis de sua morada celeste promovidos por ele.
Meu interesse pelas festas juninas é empírico, desde criança acredito demais que colocar bandeirinhas nos aproximava de algum encantamento particular e ao mesmo tempo coletivo.
De Antônio, pouco soube. Ouvia minha avó Suely falar das simpatias para arranjar marido e do comprometimento que o santo exigia, coisa esquisita maltratar santo, mas interessante. Essa é a maneira exusíaca de profanar o sagrado e sacralizar o profano, santo bom é santo mandado, comandado, guardado. Santo que bebe cachaça em troca de favores, santo que atende pedido enquanto come despacho. Antônio é bom porque promove invertidas sagazes na fé do Brasil-nação, coloca em suspensão o marasmo e o mandonismo colonial em sua trezena. Antônio é santo feito a gente, de aproximação, de conversa no ouvido, de fofoca e de ação.
João é meu apetrecho de fé. Aprendi a comer doce de abóbora e de batata em formato de coração por conta dele. Tanto enchi o saco de meu avô Marcello que consegui colocar bandeiras coloridas em seu quintal para fazer a minha festa junina no dia de João, embora meu sonho megalomaníaco sempre tenha sido manter cipós de São João com suas flores de cor laranja pela casa inteira, para ver cada bulbo murchar e chupar seu mel. Meu avô, entre um estalinho e outro arremessado no chão, me ensinou a colocar esses bulbos protegidos por suas pétalas na boca e esperar o dulçor estourar na língua. O fazia em silêncio, desejando mesmo beber quentão, até que o fiz e voltei correndo para os bulbos de mel.
Pedro foi meu paradoxo. Sentava na primeira fileira da igreja matriz de nossa cidade, ainda pequeno, e olhava para a pintura do teto, aquele homem de cara fechada segurando uma chave enorme em suas mãos. Meu avô me ensinou que são as chaves do céu, entrar lá não é para qualquer um. “Pedro vai deixar a gente entrar no céu?”, “Vai". Se meu avô falou está falado. E com a certeza de que um dia eu ajudaria Pedro a faxinar sua casa e promover os trovões e os barulhões na terra em dia de chuva, esperava meu pai chegar com os fogos de artifício comprados na véia da esquina, uma mulher amedontradora que abria sua portinha de rojões quando bem entendia. Esperava meu pai beber sua cerveja no botequim, dar a volta calmamente no quarteirão na ânsia de encontrar a portinhola aberta. Pedro é realmente um paradoxo, guarda as chaves do céu, faz um barulhão danado e a gente tenta se aproximar de sua magnitude tentando explodir no ar rojões e espalhando foguetes com os braços, ateando fogo pela graça de vê-lo findar no pouco cabo frouxo que temos nas mãos.
Meu negócio com os santos juninos é coisa de casa, de quintal, de comida e de música. Aprendi com meu avô Marcello e com a minha avó Suely a não ter muita paciência pra festejos vazios, mas menos ainda para gracejos sem festa. O negócio é beber e comer enquanto se tem boca e perna pra sustentar as demandas da mesa, e Antônio, João e Pedro nos ajudam nisso.
O pluralismo encantado de junho é tamanho que as escolas de samba também reverberaram suas encantarias e sua magnitude identitária no carnaval. O nosso devir macumbeiro é de uma potência absurda mesmo. Em 2017, a Mangueira cantou o verso “abriram-se as portas do céu, choveu no roçado. / Num laço de fita a menina pediu comunhão", revelando que a gente é o clamor festeiro que fazemos ao divinos de junho. No enredo Só com a ajuda do santo a verde e rosa também arrematou que “eu já benzi minha bandeira, / bati três vezes na madeira / para a vitória alcançar. / No peito patuá, arruda e guiné, / para provar que o meu povo nunca perde a fé, / a vela acesa pro caminho iluminar".
Alegoria São João do desfile de 2017 da Mangueira. Foto: Rodrigo Corosito.
Temos vários exemplos da nossa complexidade e da nossa sofisticação ética e estética na manutenção de nossa ontologia, mas o devir macumbeiro é o que nos mantêm enquanto sujeitos no país. A nossa capacidade de ritualizar a vida e de produzir encontros sistemáticos entre o samba, a macumba e o cotidiano é o que promove a circularidade ontológica que tanto nos dá alteridade.
Alcione no desfile da Mangueira de 2017. Foto: Alexandre Durão
Lembrando a última postagem que fiz aqui sobre a rasura do tempo espiralar de dona Leda Maria Martins, acredito que estão nessas rasuras as nossas pluralidades e as nossas multiplicidades enquanto seres viventes. Nós recuperamos nas nossas memórias os recursos para nos tornarmos pessoas e para nos estabelecermos enquanto comunidade.
Antônio, João e Pedro nos ensinam a esperançar. Não tenho mais o meu avô Marcello como um ser vivente ao meu lado, mas ele reverbera em mim como um supravivente, participando do meu imaginário como um produtor de fantasias e de realidades. O carnaval é um exemplo empírico da nossa capacidade ética e estética de também produzir fantasias e realidades, de recuperar a rasura de nosso tempo espiralar para potencializar a memória e praticar possibilidades encantadas de existência.
Que a gente continue carnavalizando Antônio, João e Pedro. E festejando nosso junho como uma alegoria carnavalesca. A nossa festa é a nossa esperança e a nossa memória um recurso de sujeitificação. Quanto mais eu me instrumentalizo pela secularização mais eu me aproximo dos encantos do sagrado, por isso, acredito e confio em meu avô Marcello, que sob a vigia das chaves do céu, a gente se concentra no sabor doce do mel tomando conta aos poucos do nosso palato.