O que pode ser nem sempre será, mas às vezes é
Então a gente vai conversar sobre hóstias, primeiras vezes e, por que não, samba-enredo
Eu poderia aqui me demorar falando sobre o canibalismo e o ritual antropófago do cristianismo, mas meu interesse mesmo está no corpo abundante e na nossa capacidade de promover modos de ser e de estar por meio do drible, da ginga e do desvio. Eis que eu fui para Botucatu, no interior do estado de São Paulo, encontrar meu namorado que estava dirigindo um grupo de dança por lá e aproveitar o ensejo para conhecer parte de sua família eletiva.
Nas idas e vindas do papo, eu que tinha saído da capital com o livro da Geisa Rodrigues,1 As múltiplas faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo, só sabia falar de malandragem, de homossexualidade, de macumba e de teorias muito particulares de por que as (re)existências do Bicha-Malandro menos têm a ver com a dicotomia hegemônico-colonial e mais com a multiplicidade e a capacidade de produzirmos pluralidade, diversidade e encantamento do nosso cotidiano.
Conversa vai, conversa vem, explicando o meu interesse em colher informações para submeter um pós-doutorado para biografar João Satã na Ciência da Religião, eis que somos surpreendidos com um “um dos meus maiores traumas é nunca ter feito a primeira comunhão".
Você que me lê deve estar se perguntando, “tá, o que uma coisa tem a ver com a outra?”. Eu adianto a resposta, prometendo desenvolvê-la melhor, de que tudo passa pelo corpo e é por eu querer falar de corpos, sim, no plural, que comecei este texto contando dessa viagem a Botucatu, o início de um estalo na minha hipótese de corpo abundante e a comprovação empírica, neste vídeo que compartilho aqui, da nossa mitopoética produtora de éticas e de estéticas muito diversas.
Na nossa conversa anterior, quando eu falei da pombagira Marquesa, da bagunça interessante que dona Domitila anda promovendo por aí baixando em terreiro, prometi que voltaria para falar de corpo abundante, pois bem, é sobre isso que vamos conversar hoje.
Uma amiga, foi minha professora, arguidora da minha banca de doutorado e pesquisadora na Ciência da Religião, Patrícia Souza, escreveu um verbete bastante interessante no dicionário de nossa disciplina, que inclusive foi pensado e organizado por nosso programa na PUC/SP, sobre Abstinência.2 Ela parte do corpo para pensar todo o processo de sociabilidade desenvolvido pela religião, tanto no campo político, quanto econômico, cultural, social etc.
Para ela, a ética e a estética religiosas (em suas diferentes filosofias e práticas) são produzidas pelo corpo, para o corpo e como consequência de um corpo. Em seu verbete Abstinência, ela escreve o quanto um comportamento ascético pode ser resultado de uma decisão abstêmia. Exemplos disso são os jejuns, a culpabilização do prazer sexual, o controle do tesão, as privações de sono, as doutrinações de faquir, os sacrifícios, os encarceramentos e o canibalismo. E, sim, tomar o sangue e comer o corpo de cristo todo domingo é o exercício mitopoético de uma antropofagia, se a sua ou o seu catequista não explicou isso é porque nem mesmo ele ou ela sabe por qual motivo faz o que está condicionado a praticar, e o cristianismo é uma bricolagem que, se for ser explicada e justificada, deixará de ser praticada.
Conto tudo isso para dizer que a Igreja Católica é uma falácia da razão e uma prática mitológica? Também, mas o que me interessa é pensar como o corpo está o tempo todo sendo um objeto de disputa entre a fé do Brasil-nação e o ritual da brasilidade. Enquanto essa fé colonizadora, hegemônica, racista, misógina, heteronormativa, mandonista, classista e reacionária nos colocou num comportamento abstêmio e de desencanto, o ritual da brasilidade, com sua multiplicidade e práticas encruzilhadas, nos proporciona cotidianamente experimentar, praticar e reverberar diversos corpos que não estão desassociados do que somos, do que podemos ser e do que desejamos ser.
O corpo abundante brinca, por isso o que pode ser nem sempre será, mas às vezes é. Nem tudo precisa de explicação, de tratado positivista e cientificista, recursos esses que fatiam a nossa complexidade e a nossa sofisticação como seres humanos em explicações e reducionismo arbitrários ou condizentes com perspectivas singulares, controladoras e dominantes.
Livro de Geisa Rodrigues sobre Madame Satã
Quando Geisa Rodrigues apresenta Madame Satã por meio das estéticas e políticas de seu corpo nos revela a potência que um sujeito com alteridade pode apresentar e reverberar em nossos processos de sociabilidade. Por isso, em sua ontologia, epistemologia e metodologia, João Satã, por ser bicha e malandro, não é uma contradição, é múltiplo, diverso e plural, praticante de seu corpo abundante.
No texto que escrevi e apresentei no V Colóquio de Religião, Pluralismo e Diálogo, em que apresentei a minha pesquisa Devir Macumbeiro3 e o exemplo de Madame Satã, falei (e escrevi) que
a gente não é um corpo, nem ocupa um corpo, nem tem um corpo, acontece que por sermos seres viventes e, também, supraviventes, nós temos uma capacidade complexa e sofisticada de transitar e de transgredir por meio do corpo, experimentando outras experiências, tanto na construção de memória, quanto na perspectiva do esperançar e do socializar.
Em minha tese e naquilo que acredito ser a nossa capacidade de ser e de estar no mundo enquanto brasilidade, eu proponho pensarmos em categorias como corporalidade, corporeidade e incorporação. Estão na nossa terreiragem essas práticas cotidianas. A nossa relação com o corpo não é desassociada de nossas ontologias, epistemologias e metodológias, porque, vamos ser francos, produzimos saber e o compartilhamos pelo corpo.
Esse exemplo fica mais evidente se nos concentrarmos nos rituais da brasilidade, como o samba, a macumba e o cotidiano encantado, mas se repararmos bem, até a fé do Brasil-nação potencializa o corpo e compreende sua significância, seja para encarcerá-lo (taí a moda evangélica cobrindo corpo feminino e, ao mesmo tempo, marcando a cintura) ou potencializá-lo, com o exemplo mitopoético da antropofagia cristã, em que se come o corpo e se bebe o sangue de cristo.
A indústria cristã (e agora eu vou falar especificamente da católica) é tão estruturada que controla tanto a ética quanto a estética compartilhadas por meio de produtos. Esse negócio de prática canibal a cada missa é uma forma de simbolizar (e propagar) o esforço individual em se destacar da comunidade, tanto no próprio ambiente religioso quanto no secular, porque você enfia na boca a misturinha de farinha com água embebida em um líquido arroxeado e imediatamente se exime de seus pecados, até a próxima semana, em que o ritual se repete.
É como se o corpo fosse passível de controle ou apenas um apêndice da nossa existência. Acho engraçado notar em meus estudos na Ciência da Religião o quanto cristãos têm dificuldade em perceber que são ritualísticos, simbolistas, materiais e profundamente mitológicos. Como consequência de uma colonialidade estruturada e estruturante e de retóricas mal-ajambradas, acreditam que suas práticas religiosas não estão sustentadas em uma mitologia fantasiosa e que reverberam encenações por aí.
Se um corpo é apenas um corpo, por que comê-lo?
Escrevi um monte, mas o meu interesse está realmente na percepção e na experimentação do corpo. Somos uma sociedade que tem muito medo de tudo o que é corporalizado, incorporado e corporificado. A gente tende a acreditar que desejos, vontades e anseios são resultados de um corpo mal controlado, mas se esquece de que nossos saberes, nossa filosofia, nossa cultura, nossa sociabilidade, nossa política, nossa economia, nossa ética e nossa estética também são produtoras de e produzidas por corpos.
Voltando a Botucatu, depois de sermos surpreendidos pela confissão de nunca ter comungado do canibalismo cristão, uma das pessoas presentes (dona de uma loja de artigos religiosos), solta um: “não seja por isso, amanhã trago uma hóstia para você". Combinamos rodadas de jogatina para a noite seguinte. Em meio às cartas e a uma mesa bem posta para o exercício da disputa recreativa, ela chega com um saco com 600 hóstias industrialmente fabricadas e embaladas. “Viu? Farinha e água".
(Você pode assistir a esse evento eucarístico clicando aqui)
Fizemos o ritual de embeber o círculo sem gosto no vinho que já estávamos tomando, comungamos e percebemos que ainda sobraram 598 (uma foi experimentada pura mesmo) hóstias. Tínhamos patês e queijos. Deram ótimos canapés. Se tem um ritual que a brasilidade bem sabe praticar é o da abundância (com requintes de encantamento), fizemos com que a materialidade do corpo encarcerador e julgador se potencializasse em festa e diversão.
Sobre Satã é interessante pensarmos em sua multiplicidade, evidenciada pelo corpo, como formas de se libertar de qualquer encarceramento. Embora julgado, por não ser um corpo passível de ser engolido, é um corpo que existe.
Adiantei, no subtítulo, que também falaríamos de samba-enredo, pois bem. A Lins Imperial, escola da Série Ouro4 do Rio de Janeiro, em 2023 apresentou Madame Satã: resistir para existir e cantou o refrão:
É a Lins Imperial, é um samba-manifesto!
Muito mais que carnaval, arte em forma de protesto!
Meu malandro bambambã, preconceito aqui não rola!
Não se brinca com Satã!
Mojubá a minha escola!
A ontologia do Bicha-Malandro foi reverberada e compartilhada pela escola como formas de (re)existência. Adiantou que apesar de um corpo, João Satã é um corpo e pode ser outros tantos. Por isso, o que pode ser nem sempre será, mas às vezes é.
Comissão de frente do desfile da Lins Imperial em 2023
Se o devir macumbeiro e a nossa capacidade de praticar um corpo abundante são formas de nos sujeitificar e de produzir a nossa alteridade, precisamos reconhecer nos rituais não processos de subalternização ou de encarceramento, mas possibilidades de vida, de existência e de encantamento.
Madame Satã praticou a sua multiplicidade e enquanto muitos e muitas percebem uma contradição, nós, com tantas hóstias espalhadas pela mesa, percebemos que a festa já está acontecendo. Os limites de nossos corpos nós mesmos que devemos estabelecer. Nós somos profundamente acometidos por assimilações de violência, o que nos distancia daquilo que, também, profundamente sabemos produzir: encantamento e abundância.
Entre a ética e a estética do canibalismo cristão e sua desautorização corporificada, acredito cada vez mais que os nossos processos de (re)existência são os corpos em festa, por isso mesmo, colocamos as cartas à mesa enquanto comíamos os bons canapés.
RODRIGUES, Geisa. As múltiplas faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo. Niterói/RJ: Editora da UFF, 2013.
SOUZA, Patricia Rodrigues de. Abstinência (verbete). In: PASSOS, João D.; USARSKI, Frank (Orgs.). Dicionário de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2022.
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
Em 2024 desfilou na série prata.
madame satã é uma figura com uma história incrível e que fala muito do que é ser brasileiro.
Pedro, a gente precisa começar a reparar nas histórias que a brasilidade reverbera por aí. João Satã é espetacular!