Por que rasurar o tempo?
O tempo espiralar de dona Leda Maria Martins e as possibilidades de encantamento
A rasura do tempo espiralar é a proposta de encantamento de dona Leda Maria Martins. Rainha do Reisado, intelectual secular e acadêmica do encantamento, poeta e ensaísta do cotidiano, a doutora em Literatura Comparada convoca a rainha das águas, as ontologias plurais e a irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá para ecoar a memória como um recurso de sujeitificação e de alteridade. A perspectiva otimista em relação ao tempo e às encruzilhadas da existência apresentada por dona Leda é resultado da vivência de uma rainha do reisado, que promove com sensibilidade uma comunicação entre nós viventes com os supraviventes. Dona Leda é uma mulher do rito e, por isso, uma defensora entusiasta da brasilidade.
Sua comunicação no Itaú Cultural, ontem, dia 19/junho/2024, em São Paulo, me fez lembrar de uma canção de Carlinhos Brown e Marisa Monte, Seo Zé. Invocando uma entidade e ao mesmo tempo um cidadão comum, apresentam um Brasil que “não é só verde, anil e amarelo. O Brasil também é cor de rosa e carvão. Patrimônio de Antônio, anônimo nômade, homem que rompe Adão com facão". A rasura do tempo espiralar nos sofistica e complexifica em detrimento da fé do Brasil-nação. A nossa memória é a construção de nossa identidade em meio às encruzilhadas.
Na música, “Seo Zé tá pensando em boi e a bananeira sangrou. Mais um pro baião de dois, Lampião findou caboclo". Conversando com uma amiga e também experimentadora do cotidiano espiralar, chegamos à conclusão de que enquanto o Brasil-nação nos dá rasteiras, a brasilidade nos ensina a voar. Nosso imaginário é o nosso facão. A gente rompe o mato encarcerador e limitante.
Por isso, nós “vamos chamar Brás Cubas pra dançar quadrilha, pra subir pra Cuba com toda família. Se encontrarmos Judas celebrando Budas, perfilamos Mulas pra abalar Belém". O que a gente pretende ser já é. Nós reverberamos nossas possibilidades por meio de um axé brincante que só existente mesmo em nossas práticas e trocas cotidianas. Nosso corpo é a rua e todas as possibilidades dela surgidas.
Nosso projeto de Nação quer exterminar com a nossa capacidade de memória, é assim com a invasão colonial, com a escravização de corpos, com uma república falida e violenta, com golpes políticos, com a ditadura militar, com o fascismo rearticulado, mas nós somos o devir macumbeiro, nosso cotidiano é encantado e nós percebemos (e praticamos) as rasuras do tempo.
Aí que está o movimento de nossa existência. Se “Seo Zé tá tangendo boi e a porteira cerrou. Quem foi nunca mais se foi e a roseira aflorou” é porque a permanência é memória, e ela precisar ser alimentada, assegurada e provocado, porque nos invade, nos corta, nos atravessa e nos irrompe com a sua capacidade máxima de ecoar.
Dona Leda Maria Martins é a experiência do corpo artístico e da alma vivente. Viva sua ontologia, viva sua existência e viva a brasilidade, onde as entidades, as personagens, os sujeitos e as possibilidades convivem numa encruzilhada exusíaca!
Repensar o tempo
Esse negócio de memória é coisa muito séria. Se não o fosse, não estaria aí a história hegemônica tentando inventar fatos e nos convencer de uma linearidade passiva como se o tempo fosse um processo contínuo de superações.
Um tempo atrás conheci os escritos de uma antropóloga indiana fartamente disseminada nos Estados Unidos e seu conceito de rumor-memória. Veena Das, a intelectual em questão, conceituava a memória como um recurso de resistência, no mais latente significado do termo. Como se nós possuíssemos uma memória coletiva reverberada pelo medo, pelo assombro e pela violência.
A denúncia dela estava direcionada às práticas coloniais e à exploração neoliberal, na construção de outros em relação ao eu-hegemônico. Uma experiência direta entre sua sujeitificação e a bibliografia por ela assimilada em seu território acadêmico, os Estados Unidos.
Embora eu concorde bastante com o conceito dela, com o amedrontamento neoliberal que nos torna indivíduos processuais reféns de um mercado fantasioso e opressor, tenho dificuldades quanto ao seu pessimismo. Terminei a leitura de Vida e Palavras: a violência e sua descida ao ordinário, seu livro publicado no Brasil pela Editora Unifesp em 2020, com um desencanto, um pessimismo em relação aos nossos processos de sociabilidade.
Até que eu me encontrei com Performances do tempo espiralar, poética do corpo-tela de dona Leda Maria Martins. Nessa publicação pela Cobogó de 2021, a intelectual compartilha uma relação otimista, encantada e brincante com a memória. Qualquer construção e assimilação de lembrança a que somos submetidos, também somos agentes e podemos recuperar em suas rasuras a sujeitificação e a alteridade que nos são roubadas.
O próprio devir macumbeiro é uma experiência ontológica, epistemológica e metodológica dessa nossa capacidade de existência. Somente nós podemos falar por nós. O Brasil acadêmico precisa potencializar e compartilhar os nossos saberes, nossas encruzilhadas são produtoras de muitas práticas e de muitos conhecimentos.
Enquanto alguns se acostumam com o sofrimento, nós desviamos e driblamos esse sentimento para que ele seja, mas não permaneça. A gente é festa!