Nesta semana participo da 36 edição do Congresso Internacional da SOTER, cujo tema é Economia e Inteligência Artificial - Desafios à sociedade e à religião. Entendo a urgência do tema e os motivos pelos quais ele foi escolhido, ainda mais para que nós que pesquisamos religiosidade em um país assolado por uma colonialidade e que junta (mal) os muitos traumas de 400 anos de escravização do povo negro e mais de 500 do povo indígena e ignora os mais de 20 anos de ditadura militar.
Nós temos um vício comportamental tanto reverberado por nossa retórica quanto por nossa política de incorporar estímulos opressores e hegemônicos, por isso, demos um jeito de assimilar o neoliberalismo como a única solução econômica mantenedora da democracia, e vice-versa, numa equação pouco óbvia e que tem muito mais fragilidades do que resultados eficazes e coerentes, como se não bastasse, atrelado a isso, temos o controle massivo de narrativas inventadas, numa bagunça entre ficção e realidade que muito privilegia o poder de poucos e assola a existência de muitos, a tal da inteligência artificial.
Meu interesse está no esperançar, tenho produzido ciência no afã de perceber caminhos eficazes para que a gente continue se (re)elaborando, se fosse para legitimar uma ciência social no trauma, na escassez, na falta de élan e no pessimismo, eu, como ser humano, teria sucumbido. Já fiz uma reflexão sobre o quanto nós importamos malhas teóricas que pouco têm a ver conosco, a exemplo dos conceitos da antropóloga indiana Veena Das, em seu Vida e Palavras: a violência e sua descida ao ordinário. Sua crítica ao sistema neoliberal é bastante relevante e legítima, mas sua alternativa é desesperançosa, seu conceito de rumor memória apresenta a insatisfação e da desincorporação ontológica de cada ser humano, mas e aí? O que a gente faz com essa constatação?
Por isso, tenho defendido cada vez mais a nossa capacidade, enquanto brasileiros e brasileiras, de produzir conhecimento e de praticar saberes em nosso cotidiano. O devir macumbeiro é o encontro encruzilhado de nossa ética e de nossa estética, uma alternativa transgressora às violências do Brasil-nação. No Congresso em que discutiremos economia e IA, apresentarei Qual a chance que nos resta se não o Brasil cocar? A pergunta foi retirada do samba-enredo do Salgueiro de 2024, Hutukara. E vou explicar por quê.
Samba, macumba e cotidiano são potencialidades de nosso devir macumbeiro, formas éticas e estéticas que reverberamos em sociedade e que constituem nosso jeito de ser e de estar. Quando pensei, elaborei, desenvolvi e escrevi a minha tese em Ciência da Religião, Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil, meu interesse estava em sistematizar nossa brasilidade e, principalmente, em propor alternativas epistemológicas de perceber uma ciência já produzida, apesar de qualquer reconhecimento (ou não) da academia hegemônica.
Por termos uma multiplicidade ética e estética, exemplifiquei os conceitos com sambas-enredo, evidenciando os conhecimentos produzidos e compartilhados enquanto carnavalizamos, porque brincadeira também é coisa séria. É o nosso corpo espiralar, como define dona Leda Maria Martins, produzindo nossas (re)existências.
Pôster Salgueiro 2024 - Enredo Hutukara
Se desejamos falar de Inteligência Artificial, tema do Congresso, precisamos falar de memória. Porque essa maneira lúdica e mentirosa de estabelecer uma comunicação muitas vezes à mercê do mercado e da vida produtiva, também produz narrativas e constrói memórias, seja na produção de novas identidades e de sujeitificações ou na manipulação das já existentes.
Restritos à perspectiva de Veena Das, perceberíamos o rumor como um amedrontamento ou uma forma de controle limitante, em que o resultado final da IA seria um assujeitamento subalternizante, sem que as pessoas tivessem alteridade e sensibilidade para romper com essa comunicação manipulada e manipuladora, mas se nos atentarmos ao nosso ritual, ao nosso corpo e aos nossos processos de multiplicidade, perceberemos nas rasuras do tempo espiralar de dona Leda Maria Martins a nossa capacidade de transgredir as narrativas impostas ou o falso discurso de liberdade potencializados pela IA. Assim, entenderemos nessa rasura a nossa potência em produzir memórias que nos sujeitifiquem e nos confiram alteridade. Por isso, a proposta de nossa comunicação é percebermos o tempo não como uma linearidade processual e gradativa, em que os fatos são superados, mas como um espiralar repleto de rasuras e, em várias delas, ecoam as nossas chances, as nossas oportunidades, os nossos processos identitárias e o nosso Brasil cocar.
Baianas - Desfile Hutukara, Salgueiro - 2024 (Foto: Nelson Malfacini)
Apresentei a malha teórica que sustenta os meus argumentos para reforçar o caráter emblemático, político e social do carnaval. A encruzilhada entre samba, macumba e cotidiano que potencializa o nosso devir macumbeiro não é à toa, é o epicentro da nossa sujeitificação e da nossa capacidade de produzir saberes por meio do ritual, talvez seja por isso que o nosso principal manifesto é o esperançar.
É interessante percebermos que o Salgueiro anunciou o seu enredo quando a mídia ainda comentava as notas e as justificativas do júri do carnaval de 2023. Esse caráter de antecipação nos permite inferir o quanto a temática era importante para a escola, por ser (1) uma novidade e (2) um enredo manifesto.
Novidade porque entre todo seu pioneirismo estético e sua vanguarda política, a Acadêmicos do Salgueiro pouco abordou a temática indígena.
Manifesto porque as escolas de samba também são um campo político em que o protesto e a identidade propõem alternativas existenciais.
Daí a constatação emblemática em seu refrão, “meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta, / pois a chance que nos resta é um Brasil cocar” que inverti como uma pergunta. A novidade e o manifesto estruturados pela escola de samba permitem que nós percebamos as alternativas presentes em nosso chão, que não vêm do progresso tecnológico das IAs, nem do mercado produtivista e subalternizante, mas do esperançar sofisticado e complexo de quem pratica a vida.
Em meio à votação do marco temporal, e de derrotas constantes dos povos indígenas em sua luta por demarcação de terra, o Salgueiro parte da mitologia yanomami com a sensibilidade necessária para que alcancemos as rasuras de nosso tempo espiralar e ecoemos memórias de esperançar.
“Antes da coroa existia (e ainda existe) o cocar. Antes do verde e amarelo existia (e ainda existe o Brasil do genipapo e do vermelho"
Se estivermos apenas concentrados em nosso vício de progresso vazio e em nossa reprodução programada pelo lúdico, não perceberemos as potencialidades em ontologias tão sofisticadas e complexas quanto as que constituem a brasilidade. Em nossas rasuras estão o cocar, o genipapo e o vermelho.
O samba ainda ecoa uma estrofe muito reveladora de nossos vícios midiáticos, em que se canta:
Você diz lembrar do povo Yanomami
em 19 de abril,
mas nem sabe o meu nome e sorriu da minha fome
quando o medo me partiu.
Você quer me ouvir cantar em Yanomami
pra postar no seu perfil
entre aspas e negrito, o meu choro, o meu grito
nem a pau, Brasil
O carnavalesco Édson Pereira e o pesquisador Igor Ricardo apresentaram um enredo manifesto que os compositores1 poetizaram como protesto. O nosso interesse, enquanto Brasil-nação é seletivo, é pontuado por memórias datadas e simbologia esvaziada, é a midiatização “entre aspas e negrito” com pouco significado, porque não apresenta alternativa política nem seguridade social, mas alegoria autorreferenciada para perpetuação do poder hegemônico.
Acontece que o carnaval transgride, a nossa ética e a nossa estética são as rasuras do tempo espiralar que nos permitem construir e praticar memórias. Por isso, assumindo uma sabedoria Yanomami presente no enredo, “Eu não morro, ainda estou vivo”, percebemos que a nossa continuidade só será uma certeza se entendermos que a nossa chance é o Brasil cocar.
Alegoria - Desfile Hutukara, Salgueiro - 2024. (Foto: Nelson Malfacini)
São muitos os enredos estéticos. Por conta de todo o caráter material do carnaval, acredito que a estética seja percebida antes mesmo de sua reverberação ética, mas a nossa defesa é a de que a potencialidade ontológica apresentada nos enredos são cruzamentos múltiplos, plurais e diversos. Não existe esse negócio de que carnaval aliena, pelo contrário.
Só para citar três exemplos de outros carnavais com temática indígena que também evidenciaram que a nossa chance é o cocar e que precisamos recuperar as rasuras de nosso tempo, deixo aqui:
Como era verde o meu Xingu. Mocidade Independente de Padre Miguel, 1983
Enredo em que a urgência da demarcação de terra já estava evidente, antes mesmo da Rio 92 e da Constituição de 1988.
Xingu, clamor que vem da floresta. Imperatriz Leopoldinense, 2017
Esse é tão emblemático, que a escola chegou a sofrer tentativa de boicote pela bancada do agronegócio. Em edição anterior da SOTER, analisamos esse enredo com pontos de caboclo cantados nas macumbas e com o 2 de julho comemorado em Salvador/BA, a verdadeira Independência do Brasil. (Pode ler clicando aqui).
Waranã, a reexistência vermelha. Unidos da Tijuca, 2022
Exemplo de um enredo em que o axé brincante é ecoado. A escola se apropria do lúdico (esse tão caro às manipulações da IA e às fabricações de memórias controladoras) para apresentar um Brasil doce, encantado e político.
Referências
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
DAS, Veena. Vida e Palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2022.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
PEREIRA, Edson; IGOR, Ricardo. Hutukara: Caderno de sinopse 2024. Disponível em: https://www.salgueiro.com.br/hutukara/
Pedrinho Da Flor, Marcelo Motta, Arlindinho Cruz, Renato Galante, Dudu Nobre, Leonardo Gallo, Ramon Via 13 e Ralfe Ribeiro compuseram o samba Hutukara, Salgueiro - 2024.
às vezes, tenho a impressão de que o carnaval é o que salva o brasil.