Quando incorporar é saber transgredir
Ainda sobre os encantamentos múltiplos do Salgueiro 2025
Nessa toada de analisarmos os sambas concorrentes do Salgueiro para 2025, uma das percepções que mais tem reverberado em mim é a capacidade de como as escolas de samba reverberam a brasilidade muito plural na Avenida. Não digo isso à toa, desde a escolha do enredo Salgueiro de corpo fechado, o Grêmio Recreativo do Andaraí pontuou sua posição acerca da violência empregada pelo Brasil-nação nas práticas cotidianas em que a disputa é circunscrita na religião.
De novo, não nos cabe questionar nem investigar as inventivas do Salgueiro e suas contradições dos posicionamentos de sua diretoria, deixemos isso para quem cabe analisar, o que nos interessa é a poética e a política compartilhadas pelo samba, e, mais do que isso, o nosso recorte é o discurso presente nas letras apresentadas, assim, o que nós alcançamos é o encantamento de brasilidades apesar de um Brasil-nação.
O corpo fechado é pautado nos saberes mitopoéticos de ontologias ancestrais e, ao mesmo tempo, contemporâneas, nas quais o que interessa é garantia da diversidade, em vez do encarceramento binário ou dicotômico. Não podemos negligenciar esse enredo em um país cada vez mais cristão, ou como já dito anteriormente por alguns poderes institucionais, “terrivelmente cristão”, modos de estreitar as possibilidades de ser e de estar com liberdade e violentar qualquer religiosidade que não corresponda à hegemônica.
Já cheguei a escrever alguns artigos acadêmicos sobre o racismo religioso institucionalizado e sobre o repertório sociocultural e histórico dos enredos de carnaval, mas por ora, gostaria de que recuperássemos um ponto interessante no texto de Igor Ricardo e Jorge Silveira, “em uma religião que celebra a vida, é fácil perceber que um corpo saudável é uma obrigação essencial”. Embora eles falem do candomblé, podemos ampliar essa compreensão para o campo da macumbaria.
Por isso esse corpo é tão atacado, um corpo que tem cor, tem gênero, tem sexualidade e de forma plural, múltipla e diversa. Ainda nas palavras dos autores, o corpo “alcança e representa o sagrado, traz sentimentos, sensações e emoções” e, embora o Brasil-nação o violente, a brasilidade o encanta e o enredo do Salgueiro é mais uma das formas de (re)existir enquanto esse corpo.
Outro livro que está presente na bibliografia do enredo é o da antropóloga Arianne Rayis Lovo Caminhando junto: produção de cura, corpos e “caminhos” a partir das rezadeiras Pankararu, em que fica evidente que os processos de sujeitificação por meio da macumbaria não é único, nem está centralizado em um saber. A encruzilhada ontológica do devir macumbeiro, embora tenha o corpo no seu eixo de intersecção, é o encontro de saberes plurais compartilhados pela brasilidade, sendo as rezadeiras Pankararu um deles, mas, nos atentemos ao título do livro para pensarmos o próximo samba que analisares, a decisão de caminhar juntos.
É por isso que em um dos sambas concorrentes, o refrão entoa
Saravá Umbanda, meu nome é Salgueiro
Preto mandingueiro, filho iorubá.
A Sapucaí é meu terreiro,
sou bom macumbeiro
ninguém vai me derrubar.
O corpo que surge dessa encruzilhada macumbeira é aquele que, apesar das intenções agressivas e da arbitrariedade do poder do Brasil-nação, não pode ser derrubado, é o preto mandingueiro, o filho iorubá, que faz da Sapucaí um terreiro, formas possíveis de existir pela troca, pela aprendizagem, pela cultura, pelo gingado, pela rua, pelo contexto, pela complexidade e pela sofisticação.
A letra é de Edu Chagas em parceria com Professor Avenas, Baez, Vânia Moraes, Walter Lopes, Beto Bombeiro, Luiz Vieira, PC Lopes, Silvia Santana e Pedro Bastos, uma ala de composição com homens e mulheres, que poderíamos inferir outras perspectivas de análise da letra, mas nos atentaremos, por ora, à descrição do ritual de encantamento que pode ser a definição de corpo fechado, mas optaremos pela perspectiva descrita por Lovo (2018), da produção de cura das rezadeiras:
Cruza a guia, Batuqueiro, cordão de aço.
Baixa o padê na encruza,
fecha o contra-egum no braço.
Na gira do candomblé, umbanda ou catimbó,
Seu Zé me vale, no inimigo dá um nó.
(Se liga moço, porque nunca ando só).
Os elementos presentes na estrofe, seja a guia, o cordão de aço, o padê ou o contra-egum estruturam os encantamentos da brasilidade e podem, ou não, reverberarem nas práticas das rezadeiras, mulheres que assimilam os saberes populares para além das religiões.
O verso “Seu Zé me vale, no inimigo dá um nó. Se liga seu moço, porque nunca ando só” sistematiza o devir macumbeiro na crença da pluralidade das existências. Em nosso cotidiano, tanto seres viventes quanto supraviventes transitam por aí garantindo nossa sujeitificação e nossa alteridade, permitindo nossas formas de ser e de estar no mundo.
Seu Zé é a garantia da pilantragem. Usar terno e gravata para sacolejar a normatividade do Brasil-nação não é para qualquer um. Dando os nós é que a malandragem desata os nossos percalços. Pode parecer contraditório, mas é no paradoxo que estabelece o nosso gingado.
Vou recuperar um pouco o texto de Ricardo e Silveira para entendermos como essa malandragem estrutura tanto o enredo, quanto a história do Salgueiro e a própria experiência da macumbaria. Nas palavras deles, depois de assumir que quem os protege não dorme, seu Zé é
“doutor das doenças da alma, do corpo e do espírito, mestre da Jurema, Exu na Quimbanda, Preto Velho na Linha das Almas, feiticeiro, mandingueiro, orador, rezador, catimbozeiro, dono da magia. Defensor dos feitiços e das magias negativas”.
Emendam dizendo que o moço é um mistério divino, “mestre curador porque faz cura, trabalhos de virada”. Atrelado a seu encantamento está o malandro carioca, no imaginário e na vivência da Lapa. Sobre isso, nós já conversamos em um texto passado sobre Madame Satã, mas recuperando a malandragem e o que ela tem a ver com a cura dos corpos e, mais do que isso, com o ato de caminhar junto para a constituição desse devir macumbeiro como um pacto de encantamento, vamos focar em seu Zé e na sua pelintragem.
Pensemos na estrofe a seguir
Magia que vem de Aruanda,
que vence demanda,
sentinela Exu Marabô.
Muamba, macumba e quimbanda,
guarda a minha banda,
ó meu pai Xangô!
Feitiço sem medo de quiumba,
sal grosso, marafo, arruda e guiné,
ousado, mandingo, escravo
de corpo fechado com a força da fé.
O caráter pelíntrico (RUFINO, 2019) é o que possibilita uma pedagogia das encruzilhadas. Precisamos chamar a atenção a essa forma de produzir conhecimento porque ela ecoa da nossa brasilidade tanto por ser potencializada pelas ruas quanto compartilhada por meio delas. Seu Zé Pelintra não se esgota em uma simbologia de encantamento, em formas alegóricas do que somos e podemos ser, mas expande para ontologias plurais que diversificam a nossa ética e a nossa estética por meio de seus ensinamentos de “muamba, macumba e quimbanda” que guardam “minha banda”.
Retomando o caráter sócio-histórico da edição passada, podemos perceber na estrofe seguinte a recuperação da narrativa dos detendores do amuleto, das mandingas e dos saberes orais, bem como de todas as raízes construídas na sociabilidade brasileira, seja na pajelança, na mironga ou nos rosários.
Vem de longe o amuleto,
sagrados escritos da lei de Alá.
Tem mandinga costurada,
pajelança, mirongueiros, o rosário a rezar.
Guiado por Moreno, o povo cangaceiro
fez brilhar seu dom de feiticeiro.
De corpo protegido contra arma e munição,
enfrentava inimigos no sertão.
“Valei-me”, Nossa Senhora,
seu manto me acalma e afaga minha dor.
Jurema, rainha da mata,
amor em cascata benze o patuá.
Vermelho e branco, quebranta todo mal,
faz a Academia campeã do carnaval!
Por fim, destaco a presença de nossa senhora, do exercício encantado de seu manto como uma forma de acalmar, para, quem sabe, fazer da vermelho e branco a campeã do carnaval. Assim, podemos cada vez mais alcançar que os sambas-enredo são produções de saberes e as escolas de samba compartilham essas pedagogias e esses conhecimentos como forma de (re)existências. Na encruzilhada dessa terreiragem, enquanto se sacraliza o profano e torna o profano algo sagrado, a disputa entre o Brasil-nação e a brasilidade se estreita para libertar, com abundância, sujeitos plurais, múltiplos e diversos.
Na próxima semana eu volto com o meu samba predileto do Salgueiro, defendido por Xande de Pilares, não sem antes deixar registrado por aqui uma forma pelíntrica de como o Salgueiro entende a malandragem tão estruturadora da escola quanto do enredo:
“(Zé Pelintra), acompanhado de sua Falange de Malandros, atua como protetor da minha casa. Vigia quem entra e quem sai, toma conta do entorno para me defender. É bom, pois faz o bem, mas, quando está “virado”, manda a maldade de volta para quem enviou. Despacha, se vinga. O inimigo cai, eu fico em pé.”
Ser malandro é saber transgredir!
Axé e até a próxima.
Referências da vez
LOVO, Arianne Rayis. Caminhando junto: produção de cura, corpos e “caminhos” a partir das rezadeiras Pankararu. Unicamp/SP, 2018.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
já estou ansioso para saber como o salgueiro vai levar esse enredo pra avenida.