Saberes mandingueiros no Salgueiro 2025
Para as macumbarias, corpo é verbo não substantivo
Na edição passada, pedi licença a você que me lê para comentar os sambas-enredo concorrentes do Salgueiro, que dentre todos, a escola escolherá qual vai defender na Sapucaí em 2025. Sem que eu recorra a hipérboles por aqui, não diria que fiquei surpreso com os resultados apresentados, mas gostei da sofisticação e da complexidade que tanto a poética quanto a política das letras puderam revelar sobre o cotidiano da brasilidade.
Por que eu não fiquei surpreso? Ora, faz muito sentido o Grêmio Recreativo do Andaraí, que tem uma história bastante cruzada com as macumbarias, escolher o enredo Salgueiro de corpo fechado e possibilitar, por meio dos sambas propostos, inúmeras interpretações que, de acordo com o texto defendido por Igor Ricardo e Jorge Silveira, vão além da compreensão óbvia do que é macumba, proteção, religiosidade popular e mandinga no imaginário de nosso país.
As letras revelam um Brasil apesar do Brasil-nação e é esse o meu maior interesse em esmiuçar o discurso reverberado pelas poéticas cantadas nesses diferentes sambas. A pluralidade, a diversidade e a multiplicidade são consequências de nossos ecos-mundos brasileiros, processos que garantem a nossa sujeitificação e a nossa alteridade.
Empresto esse conceito de ecos-mundo do martinicano Édouard Glissant, o poeta, ensaísta, romancista, teatrólogo e, próximo da ontologia exusíaca, um filósofo de seu próprio corpo, para analisar, agora, o samba apresentado pelo cantor e compositor Fred Camacho1 para a disputa do Salgueiro.
Nele, acompanhado do caráter brincante de um dos co-autores, o historiador e filósofo do botequim carioca Luiz Antonio Simas, Camacho apresenta um verso que sistematiza não apenas as encruzilhadas encantadas da brasilidade, mas esses ecos-mundos que nos possibilita ser e estar em sociedade. Atente-se que
Kiumba, desiste de mim que sou da macumba!
No candomblé ou na linha de umbanda,
na rua, na gira, venci demanda.
Fica comigo que eu vou explicar por quê.
Dentre toda a bibliografia que estrutura a defesa do enredo (e prometo falar dela no decorrer desses textos em que analisaremos a poética e a política das letras), um dos que muito me alegra por ali estar presente é o da historiadora Daniela Buono Calainho, o Metrópole das madingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Nele, além de revelar toda essa potencialidade que não é de resistência, mas de (re)existências da brasilidade em detrimento da violência do Brasil-nação, Calainho sistematiza exatamente esses lugares de reverberação de encantamento presentes no samba de Camacho, por exemplo, o candomblé, a umbanda, a rua e a gira.
São nesses lugares experimentados, vivenciados e articulados por sujeitos encarcerados no imaginário colonial como sobras e restos que a diversidade, a multiplicidade e a pluralidade configuram como estruturantes das sujeitificações e das garantias de alteridades.
As tomadas das ruas e as produções tanto estéticas quanto éticas das giras reforçam a disputa entre a brasilidade e o Brasil-nação não pela assimilação do jogo violento da colonialidade, mas pelos dribles, pelas alternativas e pelas transgressões articulados no cotidiano, na ruptura dos processos de encarceramento e de subalternização.
Assumindo o vocativo de Kiumba, uma forma de conceituar o que religiosamente podemos entender como espíritos sem luz ou obsessores, o secularmente como projeto de Brasil-nação impostor e segregador, Camacho pratica o seu axé-brincante como um protesto e ao mesmo tempo como um reforço de alteridade. Ele pede para que as imposições coloniais e seus asseclas (branquitude, heteronormatividade e misoginia) desistam dessas existências plurais, assumidas como “da macumba”, porque conhecem e praticam ontologias, epistemologias e metodologias que vão além dos limites segregadores e reducionistas do saber hegemônico.
É o que tenho conceituado em sala de aula e conversado por aqui como devir macumbeiro, saberes produzidos e compartilhados por meio de nosso cotidiano que reforçam nossas formas de ser e de estar em sociedade reverberadas pela brasilidade. Nas palavras de Glissant, nossos ecos-mundos e na historiografia de Calainho, nossas mandingas.
Você sabe o que é mandinga? Queria, primeiro, que você fizesse o exercício de procurar em seu repertório o que essa palavra significa, sem correr este texto e buscar por eventuais respostas. Podemos assumir que, o que ecoa em nossa brasilidade, é a percepção de que mandinga tem muito mais a ver com a encantaria e com as possibilidades da macumbaria do que qualquer outra coisa, certo? Se formos perspectivar pela binariedade reducionista do Brasil-nação, a mandinga é a materialidade do mal em contraponto a qualquer materialidade de bem que uma religiosidade segregadora (como o cristianismo) possa permitir.
Por essa perspectiva material, poderíamos assumir as mandingas de acordo com as definições da materialidade religiosa (SOUZA, 2019), defendidas por minha amiga e pesquisadora na Ciência da Religião, Patrícia Rodrigues de Souza. Seriam os patuás e todos os seus segredos ou os apetrechos carregados no corpo formas de proteção, mas também de historicidade e de memória. Se você leu Um defeito de cor, o romance da escritora Ana Maria Gonçalves, a sua definição de mandinga tem um cunho mais sócio-histórico.
No processo de escravização de corpos pretos durante o Brasil Colonial, a população mandinga era conhecida pelo hábito de carregar um pequeno pedaço de couro com inscrições de trechos do Alcorão pendurado, mais ou menos um amuleto ou um patuá. Acontece que, por serem letrados em detrimento dos saberes orais de outros sujeitos escravizados, articularam processos de sociabilidade mais próximos do ambiente urbano, o que possibilitou revoltas, levantes e comércio.
Daí também assumirmos uma materialidade do corpo, de acordo com a defesa de Souza (2019), para potencializar formas de religiosidades incorporadas, corporificados e corporalizadas. Explico isso para reforçar que os ecos-mundos da brasilidade reverberam desses encontros de (re)existências articulados no Brasil Colônia e possibilitam a complexidade e a sofisticação do que entendemos como macumba, porque objetos até então assegurados por islâmicos passaram a ser sustentáculos e propagadores de saberes macumbeiros.
Mas voltando para a ideia de corpo, percebemos que ele é fundamental para a nossa formação ética e estética enquanto sujeitos sociais. A partir de nosso entendimento de corpo, podemos assegurar existência, reivindicar direitos, e articular saberes. Não à toa, foi por meio de corpo que o trânsito dos processos de articulações poética e política da mandinga se desenvolveu, a ponto de ecoar por meio da macumbaria, como sinônimo tanto para sua liberdade quanto seu encarceramento.
Por isso o Salgueiro canta o corpo fechado, uma forma de potencializar os lugares de proteção e ao mesmo tempo de encantamento. Um corpo fechado para a violência é um corpo aberto para existências.
Voltando ao samba, é interessante percebermos que a narrativa ali apresentada começa com o caráter identitário da festa, por meio da dança do Caxambu, a ritualística do corpo em seu axé-brincante e ritmado na troca de saberes afrodiaspóricos na roda do jongo. Os ecos-mundos reverberados pelos jongueiros constituem repertórios éticos e estéticos fundamentais para a brasilidade.
Vamos na dança do Caxambu
que vovó abençoou
na pedreira de Xangô.
Ê Pimenta, Mojubá!
Malungo, minha bolsa de mandinga
garante que o mal não vinga.
Eu carrego o patuá
desfaço a inveja e a má sorte.
Feito no sertão, seu moço,
macambira estrelada
protege contra todo desmazelo
como o sinete na aba do chapéu do Cangaceiro.
Também reverencia Exu Pimenta, oriundo das encruzilhadas do Salgueiro e circunscreve as ações da mandinga e do patuá na proteção e no afastamento das mazelas cotidianas para, então, apresentar outro eixo estruturante das macumbarias da brasilidade: os saberes sertanejos.
A poética e a política da macambira estrelada é o alimento do gado durante a seca do sertão. A bromélia laciniosa é a fonte de água, fibra e proteína para a continuidade das vivências muitas vezes abandonadas pelo Brasil-nação. Ser feito no sertão e ser protegido do desmazelo ecoa as ontologias das benzedeiras e das rezadeiras, mas também dos sujeitos que produziram levantes e revoltas para romper com o esquecimento hegemônico.
A mão que prepara o abô
e banha meu corpo.
O contra-egun, iaô
afasta o “encosto”.
Kiumba, desiste de mim que sou da macumba!
No candomblé ou na linha de umbanda,
na rua, na gira, venci demanda.
Inimigo cai, eu fico de pé.
Malandro que sou,
quem me carrega é a fé.
Bato na esquina paó,
boto padê pra Bará,
meu santo é forte, ninguém vai me derrubar.
Nessa estrofe, a ideia de corpo se faz presente o tempo todo, ainda mais reverenciada por Exu Bará, o dono do corpo, entendendo o quanto é necessário não só para a manutenção da vida, mas para a produção e a partilha de saberes.
A mão que prepara o abô (banho de ervas) e banha meu corpo ou mesmo o uso do contra-egun (palha trançada no braço) para afastar encosto são formas de experimentar o corpo como o próprio amuleto, tanto para afastar o mal, quanto para reverberar conhecimento.
Sai Panema! É rito de pajelança!
Quem cura, dança e bebe na cuia Jurema.
Sai doença, mau-olhado e desacato,
fecho o corpo no mato no tronco da Sapopema.
O Salgueiro tem mandinga de Preto Velho!
Fundanga de Marabô! Axé!
Na curimba, meu tambor é brabo,
corpo fechado, saravá seu Zé.
Panema é caçadar. Mandá-lo sair e trazer para perto de si o rito da pajelança é a marca de um brasilidade que reivindica o seu lugar originário, dos saberes indígenas fortemente cultuado pelas macumbarias.
Preto Velho, Marabô e seu Zé são figuras também centrais da encruzilhada do Salgueiro, a escola do Andaraí que se sustenta nas cores do malandro, vermelho e branco, que reverencia seu Marabô e que abaixa a cabeça para as sabedorias dos mais velhos.
Reforço a ideia de que este samba de Fred Camacho potencializa os ecos-mundos de Glissant, mas bate cabeça para a historicidade do morro do Salgueiro. Não acredito que seja o samba escolhido para o desfile do ano que vem, mas por meio dele, entendemos que, para as macumbarias, corpo é verbo, não substantivo. Vamos incorporar!
Escute o samba
A propósito, sobre o livro Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves, neste ano de 2024, a Portela desfilou um enredo baseado no livro com um samba belíssimo, com um dos versos mais lindos do ano, utilizado por mim como epígrafe de minha tese, “é mão que acolhe outra mão: macumba".
Pois bem, aconselho você a assistir ao desfile, tem no youtube e a ler a reportagem da Piauí deste mês sobre a autora e a repercussão de seu livro.
Referências da vez
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandigas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Garamond, 2008.
GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de Cor. 28ª ed. São Paulo: Editora Record, 2006.
SOUZA, Patrícia Rodrigues de. Religião material: o estudo das religiões a partir da cultura material. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
Compositores do samba: Fred Camacho, Luiz Antônio Simas, Eri Johnson, Diego Nicolau, João Diniz, Guinga do Salgueiro, Fabrício Fontes, Wilson Tatá, Gustavo Clarão e Francisco Aquino.
Só pra dizer que estou amando as análises!
difícil não torcer por um samba que tem o simas entre os compositores...