Alteridade religiosa no samba e na literatura
Possibilidades para se contar a história da rainha Ginga
Depois que eu li As mulheres do meu pai, em 2010, do angolano José Eduardo Agualusa, em uma leitura obrigatória para uma disciplina na graduação de Comunicação Social, só fui reler o autor em 2021, no meio da pandemia, em uma manhã esquisita em que peguei a pequena e belíssima edição da Língua Geral para começar a ler ao tomar café, supreendentemente, terminei na manhã seguinte, com pequenas pausas durante a história.
Digo isso para adiantar que pouco li do autor, no caso, havia lido apenas um livro dele (e o relido) antes de pegar a edição de A rainha Ginga, da Tusquets, para me surpreender (e bem) com a sua narrativa sobre uma história que poderia ser da rainha que expulsou os portugueses de Angola no século XVII, mas também é de sua corte, dos trânsitos África-Brasil e na perspectiva do narrador.
O livro não se pretende uma biografia, o livro não se pretende uma historicização da colonialidade, o livro não se pretende factual ou ficcional. O que o autor propõe é um pacto de verossimilhança e uma história interessante sobre um reinado apartado de um reino. Por isso, ao contrário da presunção de outras obras das quais falei por aqui, li A rainha Ginga com a vontade encantada de quem dá continuidade na leitura pela história e pelas escolhas narrativas, acho que envolvimento é o nome disso, não?
Fica aqui comigo que vou explicar por quê. E também vou recuperar o samba-enredo Suprema Jinga, Senhora do trono Brazngola1 defendido em 2010 pelo Império da Tijuca, em que clamando por Matamba, abre perguntando
Eparrei oiá ... Oiá ... Oiá!
Nesse Império Brazngola,
minha verdade quem saberá?
Poderia pontuar que o Agualusa (igual ao moçambicano Mia Couto e, em alguns livros, ao angolano Ondjaki) costura seu texto com algumas frases de efeito que acredito algumas pessoas pesquisadoras (ou críticas literárias) julgarem ser destinadas para a comoção de quem lê, naqueles jogos da prosa poética e das afirmações encantadas presentes na literatura de países que precisaram provar sua autossuficiência literária, os subalternizados.
Eu acredito no encantamento e na alteridade da autoria de pessoas muito atentas à complexidade e à sofisticação intrínsecas em personagens que precisam existir e (re)existir, por isso, a presença dessas marcas textuais que soam como lembranças necessárias de determinado porvir.
Ao contar a história de Ginga, Agualusa conta a história de Francisco José da Santa Cruz, padre pernambucano que se torna secretário da rainha do Dongo e da Matamba e narra suas conquistas e suas decisões em seus cercos. Com isso, as personagens se cruzam num compasso interessante entre as disputas e os acordos sociorreligiosos que interessam para marcar a alteridade religiosa do século XVII, negligenciada na autoria dos livros de história, que tratam com passividade as tomadas coloniais e a arbitrariedade do poder.
Segundo o autor, nessas frases de efeito de que lança mão,
“o homem que odeia, quando o ódio é muito, está disposto a pagar caro para poder ter à sua mercê a razão de tanto rancor” (AGUALUSA, 2023, p. 88)
Os fluxos transatlânticos que marcaram o período violento da escravidão de corpos pretos e os domínios cultural, religioso, social e econômico do Brasil e de países da África Subsaariana são buscas incessantes pelas justificativas do controle colonial. O ódio propagado precisa de um destino e, assim, o outro adquire formas com cor, gênero e classe.
Porém, se “há mentiras que resgatam e há verdades que escravizam” (AGUALUSA, 2023, p. 98), o autor decide contar a história da rainha por meio de sua alteridade religiosa, ao cruzar a poética e a política do Dongo e da Matamba (reincorporadas no Brasil pelo candomblé Angola, mas isso é outra história) com a poética e a política do cristianismo.
Agualusa propõem essa encruzilhada sem associar ou sincretizar ritos que elaboram éticas e estéticas, mas reforçando a complexidade e a sofisticação oriundas desses cruzamentos e dessas incorporações.
Quando elaboramos o conceito de devir macumbeiro para ser aplicado na Ciência da Religião, nossa intenção era justamente a de perceber a autonomia nas existências de sujeitos históricos que costumam padecer sob o encarceramento hegemônico, ou como objeto de estudos passível de qualquer categoria de controle e de simplificação ou como alegoria de sociabilidade, como se fossem apenas exemplificações de contextos sociais (BONINE, 2024).
Diferentemente de outra pretensa biografia da qual já falamos por aqui, a história de Ginga é contada por Agualusa sem a intenção de corresponder a um factual que mais está circunscrito no encantamento do que nas restrições seculares, por isso, o autor opta por uma ficção histórica que nos permite perceber trânsitos culturais e religiosos que reverberaram em nosso país e constituíram a nossa brasilidade.
Em nossa disciplina (devedora de conceitos hegemônicos e coloniais), tendemos a nos apoiar na falácia do sincretismo religioso para explicar as disputas e os acordos constituintes de nossa sociedade, mas Ginga é a personificação do quanto essa categoria simplifica e reduz a complexidade e a sofisticação de nossas, mais uma vez, alteridades religiosas.
Enquanto o sincretismo tensiona a política e a poética em uma relação de poder, na qual o “mais forte” se sobressai ao “mais fraco”, como resultado da violência colonial, a alteridade reformula essa disputa de sociabilidade ao legitimar a pluralidade, a diversidade e a multiplicidade das pessoas, tanto no seu campo individual, quanto comunitário (BONINE, 2024).
O que nos permite lembrar do samba-enredo do Império da Tijuca, em que se cantou
Quem sou eu?
Sou Jinga, tô na ginga desse samba.
Quem sou eu?
Guerreira que nasceu lá em Matamba,
quimbandeiros profetizaram minha sorte,
viram longos tempos negros,
mas me deram braço forte pra lutar.
Sangue de Kgola Kiluanji,
uma vida de mistérios pra contar.
Apresentando a rainha que pratica a transgressão em seu próprio reino, assumindo o poder e (re)elaborando os papéis de gênero, tendo para si um séquito de esposas (homens cisgênero que praticam o papel até então de mulheres cisgênero) e controlando tanto a poética e a política de seu povo quanto a do colonizador.
Por isso ter os braço forte para lutar e uma vida de mistérios para contar.
O samba ainda canta que
Senhor, a sua luz eu aceitei,
com adversários me aliei,
meu veneno foi além das ambições.
Governei como varão,
quilombola de Angola,
mesmo vencida unifiquei nações.
Sou orgulhoso de uma raça,
história que viaja nos negreiros,
sonho de um povo,
senhora dos terreiros.
Venho na força do vento,
queimo como fogo,
dona do maracatu,
minha espada é de ouro.
Sou a luz da meia noite,
meu cortejo vai passar,
Sou rainha do congá.
Interessante pensarmos que, à primeira leitura, parece que o samba canta uma Ginga convertida, conta a história da dona Ana de Sousa que conseguiu unificar nações porque aceitou a luz do senhor cristão e abdicou do veneno que está nas ambições, mas é interessante percebemos a próxima construção do samba, e a tomada de sua história pela perspectiva dos terreiros.
Ginga é a força do vento e o fogo, mitopoética elaborada por Matamba, nkisi Angola, que de forma muito, mas muito rasa, podemos exemplificar como Oiá-Iansã do Ketu e Avejidã no Jeje.
O samba não canta o sincretismo religioso, canta a alteridade religiosa ecoada em ser a dona do maracatu, luz da meia noite e ter um cortejo para vê-la passar.
A colonização é uma covardia, tanto que o autor pontua que “os portugueses fugiram tão depressa que não deram sequer a possibilidade de mostrar a nossa bravura. Com covardes assim ninguém consegue ser herói” (AGUALUSA, 2023, p. 157). Essa é a síntese da colonialidade, a fuga do poder hegemônico é a sistematização da arbitrariedade da violência, tanto na ausência de punição quanto na estratégia de domínio por quem conta a história.
Encerrei a leitura do livro com a vontade de relê-lo, mas o farei daqui algum tempo, depois de depurada essa primeira leitura. De certa forma, me lembrou um pouco A Muralha de Dinah Silveira de Queiroz. As histórias estiveram, estão e estão aí, são múltiplas, diversas e plurais, dependendo de quem as conta. As possibilidades são tantas…
Fico com as perspectivas encantadas e com a defesa cada vez mais direcionada para a recuperação das alteridades religiosas que encantam e conferem alteridades às existências. A poética e a política foram cooptadas por regimes encarceradores transformando pessoas em indivíduos.
Conforme o subtítulo de Agualusa, o livro, além da multiplicidade de Ginga, conta a história de como os africanos inventaram o mundo. E, nisso, tem muito de Brasil.
Referências:
AGUALUSA, José Eduardo. A rainha Ginga. Tusquets, 2023.
AGUALUSA, José Eduardo. As mulheres o meu pai. Língua Geral, 2007.
BONINE, Eduardo. Devir macumbeiro. A epistemologia de terreiro como produtora de conhecimento, de existência e de alteridade no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024.
Composto por: Djalma Falcão, Grassano, Ito Melodia, Jota Karlos e Marcio André.