Multiplicidades carnavalescas e a nossa alteridade
Os sambas concorrentes do Salgueiro potencializam o devir macumbeiro
Um dos meus prazeres da vida é acompanhar as eliminatórias dos sambas-enredo das escolas do Rio de Janeiro, não muito pela concorrência, eu fico um pouco aflito, o faço mesmo pela poesia e pelo repertório. No ano passado, delirei com as eliminatórias da Imperatriz Leopoldinense. Desfilando O testamento da cigana Esmeralda, a final foi disputada por dois sambas incrivelmente bem elaborados, com a poética e política necessárias para um desfile da Imperatriz e, realmente, não teríamos outra alternativa se não a de considerar um empate e unir a estrofe de um com a estrofe do outro, assumir os dos refrões e levar a cigana com todo seu encantamento para a Sapucaí.
Desde que comecei a pesquisar o devir macumbeiro no Programa de Pós-Graduação de Ciência da Religião da PUC de São Paulo, tenho percebido que não podemos falar de brasilidade e de ontologias muito presentes (e produzidas) em nossas ruas sem falar de samba, de macumba e, obviamente, de cotidiano. Esse negócio de referenciar Max Webber, Émile Durkhein, Wilheim Dilthey, Rudolf Otto e patota está realmente com nada quando o assunto são nossos botequins, nossas encruzilhadas, nosso jogo do bicho, nossas vielas, nossos becos, nossos quintais, nossa fé (assumindo o conceito tão caro para a disciplina) e nosso rito.
Mesmo quando propomos uma problematização entre o secular e o religioso, assumindo a dicotomia padrão desses pensadores, não alcançamos a complexidade e a sofisticação reverberadas apenas pelo fato de nós sermos nós. Se assumirmos apenas essas perspectivas (muitas vezes datadas, e essa crítica é importantíssima para que a gente consiga alcançar as potencialidades do cotidiano), não conseguiremos perceber aquilo que nos é esfregado na cara a todo momento quando saímos às ruas: nosso devir não é compartimentado, é na bagunça, no drible, no cruzo, no encontro, na brincadeira, no contato, na poética da relação (assumindo o pensamento do martinicano Édouard Glissant) que a gente constrói saberes.
Por isso, é sambando que a gente continua, que, de todas as formas, eu continuo sendo eu, você continua sendo você e assim nós vamos, sambando, nas direções (sim, no plural), de nossos desejos, de nossas vontades, de nossos quereres e, óbvio, trombando com as mazelas, com os malemes, com as quizumbas, com os banzos, com a subalternização, com os empecilhos, com o neoliberalismo, com as violências etc; mas o importante mesmo é a gente continuar e, na brasilidade, essa continuidade é um pacto produzido por meio da ética e da estética que não negligencia a alteridade dos outros, pelo contrário, são amalgamados como um samba.
Fiz esse preâmbulo todo para explicar que, por não conseguir me desassociar da minha vontade e do meu afã de acompanhar as eliminatórias dos sambas-enredo, vou compartilhar com você as minhas impressões sobre a disputa do Salgueiro para 2025. Então, em vez deste texto sair às segundas, vou soltá-lo às sextas, durante algumas semanas, para compartilhar essa poética e essa política com o desejo de animar o seu fim de semana, porque o carnaval também tem essa intenção: jogar confete e disparar serpentina naquilo que aparentemente pode ser banal. Um pouco de brilho, de gozo e de festejo é a nossa maneira de esperançar!
Não quero entrar aqui nos pormenores que constituem a história do Salgueiro, nem os seus possíveis envolvimentos com os tipos encarceradores que, por ora, manipulam e estigmatizam a nossa sociedade. Uma escola de samba não é feita apenas por seu ou sua dirigente, é bateria, é mestre-sala e porta-bandeira, são as baianas, são as crianças, os componentes de ala, as pessoas costureiras de fantasia, as pessoas idealizadoras e produtoras de alegorias, os e as carnavalescos, as turmas das torcidas, as galeras entusiastas e a ala de composição!
Para 2025, apesar de uma pequena citação (não entendi muito bem o porquê, embora eu tenha entendido sim e preferi me fingir de besta) “Salve Deus!”, o Salgueiro defenderá o enredo Salgueiro de corpo fechado, que se for de seu interesse, pode ser lido aqui neste portal, mas resumindo, a ideia de Igor Ricardo e de Jorge Silva é levar para a avenida a história de nosso rito, muito mais do que a de nossa fé. Apresentar como o nosso repertório encantado é herdeiro de muitos trânsitos de um tráfico violento de pessoas, da colonização compulsória de corpos, da manipulação de muitos desejos, da imposição de certos valores hegemônicos e, ao mesmo tempo, da elaboração de nossas práticas transgressoras e de nossos comportamentos brincantes.
Por isso, para poder falar do enredo do Salgueiro, eu falo da poética da relação de Glissant. O que nós produzimos em nosso país é um jogo de (re)existência cadenciado nas disputas entre o Brasil-nação (e seu dispositivo de fé), daí o desnecessário “Salve Deus!” do texto da escola, e a brasilidade (com seu dispositivo de rito).
O nosso ritual é múltiplo, diverso e plural, por isso, não me espantou o fato de os sambas concorrentes refletirem todas essas possíveis formas de se (re)encantar. Se pensarmos pela poética da relação, o que surge dos encontros são ecos-mundo sustentados pelas possibilidades de ser e de estar por meio da convivência, então, convido você a acompanhar esses ecos cantados nas propostas de samba. Neste texto, vou me concentrar em um que, por acaso, não é o meu predileto, mas é o que tem a estrofe mais bonita e mais interessante quando pensamos em devir macumbeiro.
Quem o defende é Paulo Cesar Feital, mas o poeta e compositor divide a autoria com Benjamin Figueiredo, Tiãozinho do Salgueiro, Rodrigo Gauz, Tomaz Miranda, Patrick Soares, Gilberth Castro, Osvaldo Cruz, Bruno Papão e Vagner Silva.
A estrofe que melhor sistematiza a nossa macumbaria é
Sem ter medo de macumba, que dirá de macumbeiro
se vier fazer quizumba, vá cantar noutro terreiro.
Tenho pedra de corisco e moeda feita em prata,
olho gordo não me enxerga. Se enxerga, não me mata.
Gostei do que ouvi pela capacidade de reunir exatamente os processos de (re)existência possibilitados em nosso cotidiano, porque a gente opera por uma lógica do “apesar de”, apegados aos nossos rituais para promover nosso esperançar e a nossa continuidade. São formas e condutas que elaboramos como consequência da colonialidade, da subalternização, do racismo, da misoginia, da heteronormatividade e de assujeitamentos ascetas que, apesar de imporem suas violências e os seus não-lugares, nós, com a brasilidade, produzimos determinados encantamentos possibilitadores de continuidade.
O refrão do samba é uma jocosa e ao mesmo tempo autêntica resposta dos improvisos arruaceiros que a gente tem a sagacidade de elaborar para poder existir:
Zum zum zum zum
vem escola de malandro, seu Zé.
Inimigo cai, eu sou bamba, fico em pé.
Avenida é terreiro, a encruza, meu lugar.
Ai que lindo, Salgueiro, vai pegar fogo no congá.
A malandragem que conduz a escola é a mesma que guia os sujeitos e possibilita seu comportamento abundante nas ruas brasileiras, formas de ser e de estar apesar da subalternidade e da violência compulsória. O malandro é uma ética e uma estética de encantamentos constantemente combatido pelo Brasil-nação, mas reverberado pela brasilidade.
Só quero chamar a atenção para a afirmação de que avenida é terreiro e a encruzilha é o meu lugar. Na Ciência da Religião, a gente tem uma perspectiva disciplinar que é a da religião material, em que defendemos a subjetividade e, ao mesmo tempo, as ontologias produzidas por meio da materialidade, mas particularmente tenho dificuldade em aplicar essa perspectiva na brasilidade, porque nós não temos símbolos, nós temos alteridade. Por isso, gostei demais dessa ideia de a avenida ser terreiro e da encruza ser o meu lugar. Poxa, essa negócio de objeto, de material e de externo é coisa de pensamento binário, a gente é complexidade e sofisticação reverberados do encontro!
Eu me empolguei e este texto está longo, eu já percebi. Parece até que estou na sala de aula pontuando as chaves encantadas presentes na poética do samba, mas é bem isso mesmo. Não vou me alongar, só quero deixar aqui as estrofes que compõem o samba e colocarei em negrito o que representa as sistematizações de nossa ontologia macumbeira, formas objetivas que produzimos para garantir a nossa diversidade social e colocarei em itálico o caráter fundamental (e que tanto me anima) do carnaval, que é o ensinamento histórico.
Neste samba, o Salgueiro apresenta a história da diáspora africana (pela violência da escravização de corpos e de saberes pretos) no encontro de existência entre os islâmicos e as sacerdotizas do Dahomé ou como minha amiga Claudia Alexandre gosta de falar, da Yorubalândia, pontuando o patuá (forma material dos islãs) e as mandingas com a curimba das religiosidades macumbeiras hoje sistematizadas.
Também pontuo o encontro ontológico dos sertanejos, com Lampião, e as sabedorias originárias, com Jurema e Pajé, na produção encantada de uma religiosidade complexa.
Arruda, figa de guiné
patuá no bolso e bom defumador.
Já firmei minha mandinga
é tempo de curimba.
Meu batuque é filho de Xangô,
vidas de além mar entrelaçadas pelas linhas do alcorão,
abençoadas bem debaixo do altar
traziam cura e proteção.
No axé de São Salvador, o Babalaô juntou na Bahia
atabaques, derbakes e sinos na encantaria.
Sem o sinete no chapéu de Virgulino
estilete do destino foi a bala que apagou Lampião.
Se eu perder a sombra que é minha,
O Pajé à luz da verdade
traz da mata, a preta rainha, curandeira e luminosidade,
Jurema êh, Jurema,
me benza pro meu corpo se fechar.
O que nos interessa, a partir do devir macumbeiro, é a nossa capacidade de (re)existir e de se encantar. Não que a gente tenha que romantizar a nossa existência e propagar os lugares de subalternidade, pelo contrário! Só que a brasilidade nos ensina que resistir também orbita no campo da violência, porque compactua com os encarceramentos e com as subalternizações.
Diante da pluralidade, da multiplicidade e da diversidade, o que a gente sistematiza está direcionado para outros existência, a nossa poética e a nossa política ecoam estética e ética macumbeiras. Deixo o vídeo com o samba concorrente e a estrofe bastante potencializadora do devir macumbeiro:
Pra dor de amor eu tomo banho de abô.
Pra renascer, ao preto velho agradecer,
Desfaço quebranto, deito pro meu orixá.
Nem vem com demanda que volta pra quem me jogar!
E o desejo de que a gente continue festejando, brincando e carnavalizando.
Até o próximo samba!
"Quem me vinga da mandinga é a figa de Guiné"
em tempos de tanta intolerância religiosa, sobretudo em comunidades do rio, é importantíssimo esse enredo do salgueiro.