É junho! Sempre que eu arranco o mês de maio da folhinha presa à geladeira, a constatação junina vem com o verso de Alceu1 “eu sei que é junho, o barro dessas horas. O berro desses céus, ai, de anti-auroras e essas cisternas, sombra, cinza, sul”, porque, né, é junho!
Junho também me lembra do filtro de barro da casa de minha avó. Não pelo filtro, não pela água com gosto específico que bebíamos daquele porrão, nem do copinho de alumínio ou da canequinha de ágatha, mas pelo santo escondido aí. A verdade é que eu não me lembro de era Antônio ou Benedito. Minha memória se confunde demais. Aquele pequeno santo já foi substituído por um soldadinho de forte apache brinde do kinder ovo. Eu fui lá e troquei, achei esteticamente justo minha avó ficar com a miniatura em cobre e eu com o santo nas minhas brincadeiras matinais.
As manhãs frias de junho, no interior de São Paulo, têm o característico cheiro de café recém passado com o de alho pilado a sal, em grande quantidade, logo no início da manhã, para adiantar o arroz, o feijão, a carne e os legumes cozidos. O pão com manteiga esquentado no fundo da panela, o resto de panqueca de banana da tarde anterior e as frutas ignoradas do cesto são o banquete matinal dos dias juninos.
Junho, não sei por que, é uma das minhas memórias favoritas. Meu pós-aniversário, o prenúncio das férias, a preguiça das manhãs madrugadas, o modão no rádio, o Fagner quando as roupas são estendidas, o desapertar das horas e a vida sem pressa. Com o santo no bolso, cismei que precisávamos de uma festa. Eu, minha avó, meu avô, minha mãe e minha tia.
Peguei alguns jornais para cortar as bandeirinhas. Desisti da empreitada, porque conversar com o santo sempre foi mais interessante. Minha tia me levou para uma loja dessas de festas e comprou um bocado de bandeira de seda. Eu queria o balão. Não sei qual foi seu argumento, mas voltei com outro metro de bandeira e pronto. Penduramos na área externa, entre as samambaias e as cadeiras de avarandado. Minha avó varreu casa, passou escovão e fez arroz doce.
Eu e o santo esperamos meu avô. Quando chegou, abrindo sua cerveja quente, pediu os jornais. Fez talhos não aleatórios, mas que para mim criança pareciam confusos. Colou umas pontas e ergueu o que parecia um candeeiro, mas era um balão. E fez outro. E mais outro. E um terceiro. No dia seguinte, acordei disposto a devolver o santo de minha avó e recuperar meu bonequinho, meu pai traria outro kinder ovo e eu precisava completar a coleção.
Porque é Junho e “esses aquários fundos, cristalinos, onde vão se afogar mudos meninos entre peixinhos de geléia azul” é só um contar de horas.
Alceu cantando Junho no disco Sete Desejos é um absurdo de lindo, mas já ouviu/assistiu a esse vídeo dele com a orquestra de Ouro Preto?
Dedicado aos Junhos com minha avó, deixo aqui para vocês um conto escrito ano passado e teimosamente guardado.
Camomila
Meu corpo ainda estava encharcado quando ela me tirou do que parecia ser um poço. Percebi que me colocou em cima da pedra, me olhou com uma certa raiva, e derrubou aquela água toda no quintal. Não era um poço, era um balde. Eu fiquei ali, debaixo do sol, agarrado a criança, tentando entender por que ela continuava em meu colo, mesmo depois desse tempo todo afundados. Os braços da mulher dançavam um ritmo calmo no ar, movimentando em direção daquele fio cruzado sobre nossas cabeças, a dela, a minha e a da criança, despregando as roupas que ficaram quarando sei lá por quantos dias.
Jogava de qualquer jeito as peças de tecido, todas emboladas, naquele mesmo balde que me era um castigo. O varal se chacoalhava com a agressividade e a pressa da mulher, ela arremessava como se estivesse em uma gincana de quermesse almejando a algum tipo de prenda, queria ser rápida, certeira e precisa. Uma das roupas em vez de parar no balde, acertou minha cabeça e me jogou para trás, se eu fosse o pino de uma brincadeira de argolas, ela não teria tanto sucesso quanto teve nesse gesto de má vontade.
Com o tombo, ficamos no escuro, eu e a criança. A roupa tapava nossa visão, abafava o nosso ar, encarcerava o nosso corpo em uma reclusão arbitrária e sem sentido, mas nada me tirava da cabeça que a mulher queria se vingar. Ela poderia correr para a gente e nos livrar daquele sufoco, só que seus movimentos estavam distantes de nós, permaneceu naquele despregar e arremessar de roupas frenéticos. Não cantarolava, resmungava, diferente do que costumava fazer.
Quando ela abria a porta da cozinha e, com calma, respirava o ar do quintal, assobiava algum tipo de cantiga, não conseguia entender direito, mas eu gostava e acalmava a criança. Eram melodias esperançosas. Eu, que sempre fiquei ali, com a visão privilegiada da mesa, do fogão e da pia, podia sentir, aliviado, o frescor de camomila quando ela abria a porta dos fundos, na permissão para qualquer visita que chegava sem anúncio prévio, surpreendendo a ela e me assustando um pouco.
Ouvia o chiado da chaleira, às vezes o vapor quente era soprado para o meu lado e me acertava em cheio o rosto e o da criança, não conseguia evitar. Tentava cobrir com os meus braços para que não o queimasse, mas a mulher sempre se adiantava esvaziando o líquido em uma xícara e enxugando nossas gostas com o pano de prato preso à cintura.
Seus gestos delicados, gentis e leves, com pequenas aproximações em nosso corpo, pedindo desculpas entre ais e uis, nos chamando de coitadinhos, sempre no diminutivo, ignorando nosso tempo.
O cheiro de camomila marcava os nossos dias. Entre o café para acordar e o almoço sem companhia, ela colhia as flores do jardim e as enfiava na chaleira para atravessar as manhãs. Alguns dias chegava a enfiar uns ramos das pequenas pétalas brancas em um copinho de dose e o colocava ao meu lado, para você, queridinho.
Encostava na pia, olhava pela janela o passar das horas ou se voltava para a gente falando alguma coisa no diminutivo, nunca para a criança, sempre para mim.
Fiquei surpreso quando entrou sozinha pela porta e me deixou ali, deitado em cima da pedra, com um pedaço de pano abafando minha existência. Percebi que estava caído perto da plantação mais tarde, quando ela já estava escorada ao meu lado, colhendo algumas flores e aliviando meu respirar, ah, é você? Ela estava exausta, eu sabia, a conhecia muito bem. Nossa rotina era de cumplicidade e, sem assobios, reconhecia sua estafa e seu descontentamento. Enfiou o tecido no bolso do avental e, com a mesma mão em que guardava os ramos de camomila, pegou a mim e a criança do chão, sem qualquer cuidado. Caminhamos de cabeça para baixo presos a mão dela, balançando de um lado para o outro, acompanhando seu caminhar frenético e firme. Eu ainda escorria um pouco, algumas gotas pingavam de mim, o que fez com que ela me esfregasse em sua saia, liberando, também, o aroma da camomila que se pregou no meu corpo.
Dessa vez eu quis espirrar, mas não sabia como fazer isso, nunca espirrei. É que algo dentro de mim tentou estourar como reflexo dessa fricção e desse cheiro inebriante que me envolveu. Não deu tempo de pensar muito, ela logo me colocou ali, ao lado da tábua de madeira, em cima da pia. Fiquei assustado pela criança, porque nunca aquele facão afiado esteve tão perto da gente. Queria que ela tivesse me devolvido para o meu lugar, com o tempo a gente se acostuma a permanecer, na violência ou no sossego, a nosso chão. De onde eu fico, consigo me entender e entendê-la, nos rompantes de afeto ou de fúria, porque ali é minha casa, mas aqui, nessa pia, nossa relação é outra, não a enxergo nos olhos, enxergo sua barriga, seu peito, o tecido florido de seu vestido, o avental alvejado, o pano de prato azul e que barulho é esse?
Ela também se assustou. Sem pedir licença, a vizinha entrou pela porta. Eu nunca me lembro do nome dela, porque sempre se tratam, numa aproximação carinhosa, por vizinhas. Oi vizinha, tchau vizinha, vem cá vizinha, como faço isso vizinha... Entrou seu corpo magro e curvado pela porta dos fundos, dizendo que estava gritando ali no quintal pedindo para esperá-la. A pressa era tanta que, enquanto me balançava com firmeza, não ouviu o chamar da amiga. Você não está bem, hein? Eu concordava, eu sabia, eu tinha certeza, mas como falar isso? Ainda bem que alguém falou por mim.
Bebeu um gole de café, será que não deu tempo de terminar a infusão ou ela desistiu da camomila?, virou-se para a vizinha que já estava sentada à mesa, com os braços cruzados sobre o tampo, olhando um pouco para ela e um pouco para o bolo de fubá que sobrava a seu lado. Esse bolo é aquele? Você não terminou de comer?
Pegou um prato no armário, colocou sobre a mesa, voltou para a pia, em silêncio.
A vizinha entendeu que já estava autorizada a cortar uma fatia, mas pegou o pedaço todo que estava à mesa e o colocou no prato. É tão pouquinho, vou terminar tudo, tá? Ela sorriu sem fazer barulho, suspirou um pouco e concordou com a cabeça. Você fez chá? Queria ter voz para responder que não, o que ela fez foi esfregar a camomila toda em mim, quase me forçando um espirro, porque resolveu que hoje só beberia café frio e brincaria com água, ameaçando todas as existências a seu redor.
Vou fazer já. Pegou a chaleira e abriu a torneira, enquanto a vizinha perguntava se ele deu notícias. Ela não respondeu. Continuou acompanhando a água escorrer na direção precisa das poucas distâncias, encheu até demais, jogou um pouco na pia e acendeu o fogo. Você também, viu? Eu me surpreendi quando percebi que a vizinha, agora, falava comigo. Seu tom jocoso de reprovação era para mim, sua boa cheia de farelo de fubá se movimentava em minha direção, eu também o quê?
Não sabia o que responder, eu não podia responder. Queria apenas que a criança não acompanhasse essa acusação desnecessária, mas não podia largá-la, essa possibilidade não existia, então, desejava apenas que a conversa não evoluísse para outro ato punitivo, não sei se resistiria a outro afogamento. Percebi que meu corpo já começava a deteriorar com esse molha e seca arbitrários. A chaleira apitou. Em silêncio, ela encheu a xícara, entregou à vizinha, e voltou a beber um gole de seu café frio.
Você está fazendo errado. A voz soou depois de beber o chá e enxugar os lábios um no outro, o que não me parece muito interessante, porque a língua logo os umedece novamente quando passada por eles, mas com isso precisei concordar, realmente ela está fazendo errado, não pode ficar esperando por algo que... você tem que fazer o que está a seu alcance. Disse isso ao se levantar e me pegar da pia. Meu coração disparou, apertei a criança nos meus braços, o que vai acontecer agora?
Com calma, ela me levou para o meu canto, pisei em meu chão, voltei a enxergá- las os olhos. Fez um carinho em mim, senti a ternura em seu gesto, mas sabia que sua voz era de ironia, o que me alcançou os ouvidos foi seu tom de esperteza e pude ver a piscada cúmplice em seu olho esquerdo. Você não tem que punir, tem que agradar. Quem pune, recebe punição, meu bem. Tem cachaça?
Se eu tivesse língua, a passaria pelos lábios. Como tenho intuição, sei bem para onde isso vai nos levar. Nessa cozinha selaremos o pacto da verdade e colocaremos às claras as nossas condições. A vizinha voltou a perguntar se ela tinha cachaça. Primeiro, olhou com uma certa surpresa, até jogou o corpo um pouco para trás, mas no mesmo silêncio que a vestia, abriu o armário ao lado do forno, abaixou-se até ficar com os joelhos no piso frio, enfiou as mãos e a cabeça para tatear e enxergar na escuridão, entre um movimento e outro, levantou-se com uma garrafa nas mãos. Queria fazer quentão, vizinha.
Não, bobagem, deixa disso, me dá a cachaça aqui. A vizinha pegou a garrafa de suas mãos e o copinho de dose ao meu lado, com as camomilas já envelhecidas.
Arremessou as flores pela janela, com água e tudo, e sem enxaguar o copo, despejou um pouco da aguardente ali. Olhou para ela, entregou um sorriso no rosto e anunciou que a partir de agora, cachaça para a alegria da casa!
Colocou o copo ao meu lado, enfiou o dedo indicador no líquido e me passou na cara. Tentei proteger a criança para que não escorresse o sabor e o prazer em seus olhos, tudo a seu tempo. A vizinha voltou a se sentar à mesa e a comer seu bolo. Entre uma garfada e outra, eu me satisfazia com o aroma preciso e exultante que se aproximava de mim, a vizinha feliz com seu gosto doce, eu efusivo com meu gosto inebriante e ela interessada no porvir.
O dia continuou. Na ausência de corpos pela casa, a presença do silêncio com o findar do dia. Enquanto fechava as janelas, ao som do líquido que borbulhava no fogão, assustou com o toque do telefone. Eu também. Não estamos acostumados com esse barulho, nem campainha ouvimos, a vizinha, quando chega, já se adentra com a voz, ninguém liga, ninguém bate na porta.
Quando voltou, acompanhei seu passo leve, seu dançar de ancas, seu suspiro suave. A criança estava quieta em meu colo e eu pude confidenciar seu movimento, em silêncio, até o armário ao lado do forno. Perdi a visão de seu corpo, mas me surpreendi quando suspendeu a garrafa de cachaça, a abriu, e em vez de despejar uma dose, colocou inteira ao meu lado, não sem antes beber um gole e com o aroma inebriante me beijar a cabeça, tocar meu corpo e sorrir.
Trezena de junho e você está guardando o que para Antônio?
Camposição de Alçeu Valença e Geraldo Valença.