Socorro Acioli e a ciência da religião
Como a literatura da escritora cearense nos permite perceber a brasilidade e a alteridade religiosa de nosso país
Acredito que a literatura contemporânea contribui um bocado para a nossa compreensão ontológica e, aqui, eu não estou estabelecendo parâmetros do que seja boa ou má literatura, nem sistematizando tópicos conceituais que corroborem (ou não) com a minha análise, o meu interesse está em perceber que a ficção escrita por pessoas que compartilham o mesmo tempo político-social que a gente proporciona alternativas tanto ética quanto estéticas daquilo que somos, que podemos ser ou que deixamos de ser.
Menosprezar ou negligenciar a literatura contemporânea é menosprezar ou negligenciar a nós mesmos.
Já tem um tempo que percebo nos romances da escritora cearense Socorro Acioli elementos fundamentais para organizar o que tenho conceituado como devir macumbeiro na disputa entre a fé do Brasil-nação e o ritual da brasilidade. Em sala de aula, em bate-papos literários e em artigos acadêmicos, sistematizei e defendi que os livros da autora não são meras alegorias ou exemplificações imagéticas dos Brasis, são recursos de elaboração e de discussão sobre nossa multiplicidade, diversidade e pluralidade.
Nem um pouco alheia ao complexo e sofisticado devir macumbeiro que nos constitui, Acioli é uma escritora atenta ao seu estilo e à sua prática de escrita, por isso, elabora seus romances com a consciência de que não basta contar uma história, é preciso organizar suas personagens, sustentar suas verossimilhanças, cruzar os recursos narrativos com as autonomias das pessoas leitoras e se munir da poética e da política que ecoam por aí, no cotidiano brasileiro.
Para nós da ciência da religião, Socorro Acioli é uma autora que nos oferece a religiosidade em toda sua potência, mas igual a nós que praticamos uma ciência da religião à brasileira, a autora também se apropria dessas experiências encantadas que surgem nas disputas paradoxais entre a fé e o ritual. Tanto para ela quanto para nós, a religião não é mero objeto, é constituinte das ontologias que nos possibilitam ser e estar enquanto seres humanos.
Cheguei a escrever em uma postagem no instagram, assim que terminei minha primeira leitura de Oração para desaparecer, no fim do ano passado, que a autora tem em mãos a complexidade e a sofisticação como elaborações de nossa brasilidade. Em A cabeça do santo, por meio da travessia de Samuel, conta a história de um processo de sujeitificação constituído por meio do cotidiano. Em Oração para desaparecer, a desconhecida, a Joana, a Cida, a Muthiana Orera nomeiam outro processo de sujeitificação nas disputas de memória, de narrativa e de entre-lugares de uma mesma mulher.
Acontece que Socorro vive, percebe, conta e escreve nosso país por meio do ritual da brasilidade, pouco dando trela ou cabimento às imposições da fé do Brasil-nação. É na miudeza que nos revela a grandiosidade. Mais uma vez, a literatura nos coloca em um lugar de percepção da sociedade, do nosso entorno, das possibilidades de existências. Ser contemporâneo de Socorro Acioli só me proporciona esse vaivém de experiências ao lê-la e conseguir dialogar com sua literatura, conversar com sua pessoa e repensar a mim mesmo.
É por isso que tanto abordo sua literatura em sala de aula e insiro sua ficção na produção acadêmica da ciência da religião, porque precisamos (1) entender a literatura contemporânea como ecos de nós mesmo e (2) aproximar a religião de nossas idiossincrasias pessoais e sociais, como produtora de saberes, não apenas como alegoria social.
Embora eu já tenha elaborado alguns estudos sobre A cabeça do santo, primeiro romance da autora e um de seus livros mais conhecidos, que já figurou em primeiro lugar em várias listas de mais vendidos, não vou me estender muito sobre ele por aqui. Na verdade, para quem tiver interesse acadêmico nas análises literárias e sociais da obra, recomendo que leiam meus artigos publicados sobre ele, porque meu interesse, agora, é conversar sobre Oração para desaparecer.
Artigos publicados sobre A cabeça do santo:
BONINE, Eduardo. A cabeça do santo. Uma proposta de compreensão sensível ao conceito religioso na sociedade brasileira. Revista Último Andar, v. 24, p. 185-195, 2021. Leia aqui!
BONINE, Eduardo; BRITO, Ênio J. da C. O rito da brasilidade e a fé do Brasil-nação: disputas de sujeitos sociais em A cabeça do santo. Caminhos - Revista de Ciências da Religião, Goiânia, Brasil, v. 22, n. 1, p. 239–254, 2024. Leia aqui!
O pesquisador, crítico literário e ensaísta Edimilson de Almeida Pereira tem um conceito fundamental para a compreensão das literatura afrodiaspórica que é o do exunouveau. Em minha tese de doutorado, apliquei o conceito para sistematizar a ética e a estética praticadas no cotidiano da brasilidade, o que sustenta e possibilita a nossa diversidade, a nossa pluralidade e a nossa multiplicidade.
A diferença, na estética exunouveau, é sua inovação, elaborada nas frestas sociais, no encontro das encruzilhadas, na incorporação do discurso e da prática num exercício cotidiano, formas de recriar por meio da transgressão. Tomando a licença para me citar,
A estética exunouveau, dos corpos macumbeiros, permite um trânsito entre si, e um trânsito de fora, construído no cotidiano, nas ruas, nos diálogos, nas encruzilhadas sagradas e seculares, nas instituições religiosas, políticas e sociais. É a linguagem do espaço social, dos subúrbios, dos quintais e das incorporações de elementos externos à experiência individual. (BONINE, 2024, p. 101)
Parto dessa perspectiva autêntica do trânsito e de tudo o que ele potencializa para elaborar meu novo estudo sobre a crítica colonial e a violência escatológica presentes em Oração para desaparecer. Embora a ficção de Acioli cruze cristianismo, cosmopercepção indígena e macumbarias, praticando a estética exunouveau de encantamento, se nos dedicarmos às camadas de análise literária de seu romance, perceberemos o quanto ele é precioso para a Ciência da Religião na criticidade do comportamento encarcerador que a colonialidade propaga.
A escatologia, para o cristianismo, está associada ao fim, ao destino final dos seres humanos (e, aqui, obviamente num sentido que não pode ser apartado da finitude biológica). Esse sentimento anuente produz, nas violências arbitrárias da colonialidade, encarceramentos de corpos e de saberes que sistematicamente são negligenciados ou apagados.
Produzir uma ficção em que uma mulher nua é achada debaixo de uma duna, em um lugar estrangeiro (que depois a gente descobre ser Almofala em Portugal) por um casal compromissado em desenterrá-la, mas sem muitas explicações é um movimento em que a início e o fim pouco importam se a sujeitificação e a alteridade forem negadas às pessoas.
A memória é um recursos de sociabilidade importante para legitimar existências, e é para isso que Oração para desaparecer nos leva, tendo a língua portuguesa em suas diferenças e semelhanças como ponto de encontro dessa encruzilhada.
Em um bate-papo literário da autora na TV Câmara (podendo ser assistido aqui), em determinado momento ela é perguntada sobre seu estilo ser o do realismo mágico (até como consequência de sua ligação pessoal com Gabriel García Marquez) e, diante da resposta dela, fica evidente o quanto sua literatura reverbera a nossa brasilidade e é um recurso estimulante para a nossa produção acadêmica na ciência da religião.
Ela diz
Nem sei se o que eu faço é realismo mágico. Os temas (de seus livros) não foram uma decisão deliberada, eu vou escrever, foi o contrário. Quando eu fui pra, em 2006, quando eu decidi que iria me dedicar à carreira de escritora (…), encontrei esse curso do García Marquez, que ele ministrou durante vinte anos. (…) E a pessoa me disse: você tem dois dias para mandar a sinopse de uma história. (…) Aí surgiu a história de A cabeça do santo por conta de uma notícia de jornal, ou seja, não foi uma escolha minha. Até as coisas que eu escrevia antes, eu escrevi dois ensaios biográficos sobre a Rachel de Queiroz e sobre frei Tito de Alencar, e essa história da cabeça apareceu porque eu precisava em dois dias encontrar uma história que agradasse o prêmio Nobel García Marquez. Aí eu fui pro curso, a história começou no curso e eu escrevi o livro, depois uma amiga me ligou e disse: tem a foto de uma igreja enterrada. Então não foi uma tomada de decisão de escrever ou seguir mais ou menos o realismo mágico. A verdade é que a minha resposta é muito parecida com a resposta que o García Marquez sempre deu sobre os temas dele, é assim. (…) Em A cabeça do santo uma pessoa disse que eu exagerei porque inventei uma cidade que só tinha sete pessoas, é Cococi no Ceará, que só tem sete pessoas, na verdade tem seis, porque um rapaz foi embora. (…) Outra coisa é que em A cabeça do santo as mulheres avisam quando vão morrer, (…) também já disseram que é um exagero, mas é a minha família. (…) A minha formação, foi criada por essa avó sertaneja cheia de histórias, (…), eu só sei que só sei escrever sobre essas coisas.
(Entrevista de Socorro Acioli em 19/4/2024, na TV Câmara)
Essas categorias, por exemplo a de realismo mágico, interessam mesmo a quem está disposto a continuam pensando e praticando perspectivas dicotômicas ou conceitos segregadores de toda a nossa complexidade e sofisticação encruzilhada. Enquanto um acadêmico, entendo a relevância dessas categorias, mas defendo que, ao nos aproximarmos de nós mesmos, precisamos expandir a percepção dessas categorias impostas pela perspectiva do outro e (1) criar categorias para nós ou (2) romper/transgredir com essas caixas empacotadoras herdadas de certo positivismo científico.
Na ciência da religião, a religiosidade fica subalternizada a lugares de sobras, o que interessa mesmo é o objeto religião e suas apropriações/configurações sociais, mas vivemos uma encruzilhada, habitamos um país de extensão territorial enorme, em que tanto a política quanto a poética reverberam mais encantamentos e transgressões do que assujeitamentos impostos pelas fantasias do Brasil-nação, a nossa ciência precisa entender que a religiosidade nos sujeitifica e nos confere alteridade.
A literatura de Socorro Acioli, mesmo quando analisada por conceitos como ontologia corporal e escatologia, ambos circunscritos nas experiências ritualísticas e dogmáticas do cristianismo, apresenta alternativas transgressoras muito próprias da pluralidade do Brasil. A finitude escatológica em Oração para desaparecer é, em primeiro momento, o reconhecimento de um vazio que a personagem narradora percebe no ambiente e na sua experiência individual para, depois, ser as possibilidades de (re)existência para si mesma.
O corpo como um recurso ontológico e um produtor de saberes também se faz presente no percurso de se constituir enquanto pessoa, na recuperação (ou na invenção) de memórias que a sujeitifique.
A trajetória da personagem é a trajetória dos brasis apesar do Brasil-nação. Socorro, por meio de seu devir macumbeiro, muito mais como um percurso pessoal do que uma escolha autoral, elabora uma literatura em que o encantamento reverbera as existências, ninguém sai ileso ao convívio, ao cruzamento e às trocas, sejam encarceradoras (pela violência colonial) ou transgressoras (pela nossa capacidade de reinvenção).
A literatura contemporânea revela o melhor e o pior que temos e que somos. Por isso tanto nos interessa o encantamento de quem nos permite esperançar.
Retomando nosso lugar de uma ciência multidisciplinar, precisamos entender que o nosso objeto de pesquisa, a religião, não é um fenômeno única e exclusivamente passível a decisões humanas, como se existisse um juízo de valor ou uma coisificação do objeto-religião.
Quando abrasileiramos a ciência da religião e a aproximamos de nossas idiossincrasias de sociabilidade, percebemos que esse objeto contribui para a manutenção social produzindo saberes ontológicos, sistematizando epistemologias e compartilhando metodologias. Isso porque a religiosidade, nas encruzilhadas plurais do Brasil, não está em disputa entre a secularidade e o sagrado, mas imbricada a nossas multiplicidades e diversidades.
Socorro Acioli é uma autora sensível ao fenômeno religioso porque é uma autora disposta a falar de si mesma.
Algo importante na literatura de Acioli é a sua disposição em construir um percurso narrativo em que nada é resultado do acaso ou de aleatório descompromisso. Em Oração para desaparecer, a construção de um corpo-memória já é anunciada nos títulos das três partes que dividem o livro.
Você trouxe todas as palavras (Parte 1)
Os ossos dela não estão lá (Parte 2)
A língua de fogo avisou (Parte 3)
O percurso de constituição da existência é anunciado. Três sujeitos compõem a desapropriação da memória e a desorientação de um corpo-narrador (você, dela e língua) para serem associados a verbos importantes (trouxe, não estão e avisou).
Os três sujeitos são a mulher, os três verbos são dela também. Leiam o livro e saberão por quê. Entre os brasis, Acioli pincelou das poéticas e das políticas, formas múltiplas de ser que cruzaram o que nos é mais autêntico: o devir macumbeiro.
Para quem se interessar, Socorro Acioli está com inscrições abertas para o seu curso Inventar histórias: perguntas e respostas sobre a escrita literária. Aulas serão dias 24, 25 e 26 de setembro, das 19h às 21h e dia 28 de setembro das 10h às 13h.
Uma baita oportunidade para quem se interessa em reverberar os encantamentos da brasilidade ou se sujeitificar por meio da escrita.
Referências da vez:
ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
ACIOLI, SOCORRO. Oração para desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
BONINE, Eduardo. A cabeça do santo. Uma proposta de compreensão sensível ao conceito religioso na sociedade brasileira. Revista Último Andar, v. 24, p. 185-195, 2021.
BONINE, Eduardo; BRITO, Ênio J. da C. O rito da brasilidade e a fé do Brasil-nação: disputas de sujeitos sociais em A cabeça do santo. Caminhos - Revista de Ciências da Religião, Goiânia, Brasil, v. 22, n. 1, p. 239–254, 2024.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.
Muito legal esses vetores de ação que identificou nas relações entre sujeitos e verbos dos subtítulos do livro. Me parece haver um campo interessantíssimo de desconstrução sintagmática e paradigmática, nos termos da linguística, a ser aberto nisso que você chama de constituição de existência ou devir macumbeiro.
Li tanto "A cabeça do santo", quanto "Oração para desaparecer" esse ano e com certeza os dois estão na minha lista de melhores leituras do ano!
Fiquei interessado em ler os seus artigos sobre os livros e depois da leitura desse seu texto de hoje percebi ainda mais a força da literatura contemporânea brasileira, que já leio e defendo há tempos.
Talvez, por tratar de temas aparentemente tão "mágicos", mas que na prática são muito próprios da nossa realidade, a literatura da Socorro Acioli consegue penetrar tão bem o "Brasil fresteiro".